Categoria: Família
Breve histórico da família no Brasil
Embora em outros artigos já tenha sido mencionado que a família passou por diversas modificações ao longo dos anos, o objetivo do presente texto é realizar uma breve linha cronológica para que seja possível entender um pouco mais sobre como tais mudanças aconteceram. Esperamos que achem interessante!
A família no Brasil regido pelo Código Civil de 1916 tinha feições herdadas da sociedade romana. No Direito Romano, um dos principais atributos da entidade familiar era a autoridade do chefe de família, o qual possuía a função de mantenedor da casa em todos os sentidos, fazendo com que os outros membros ficassem subordinados a ele.
O pai detinha o poder de decisão dentro da família e não podia ser contestado pelos demais membros da entidade familiar, tampouco pelo Estado. Assim, os dependentes praticamente não tinham seus desejos próprios atendidos.
Outra característica importante era relacionada ao patrimônio, o qual era colocado como prioridade, tendo em vista que os interesses econômicos influenciavam as uniões matrimoniais, vistas como uma forma de se garantir a futura transmissão de bens aos herdeiros.
O Código Civil de 1916, no tocante às disposições familiares, era organizado com base em um modelo no qual o matrimônio era, também, a instituição mais importante, sendo considerado como a única forma legítima de se constituir uma família. É certo que outras estruturações familiares também existiam, contudo, não recebiam a tutela jurídica do Estado.
Ressalte-se que, em tal momento, ainda não era possível o divórcio ou separação, sendo a única maneira de desfazimento do matrimônio a sua anulação, ou o desquite1, o qual era previsto somente para casos específicos.
Segundo Ana Carolina Brochado TEIXEIRA, o motivo dessa forte influência do Direito Romano na legislação brasileira deve-se ao fato de que as leis portuguesas foram as primeiras a vigorar no Brasil, mesmo após a independência do país, e elas tiveram origem basicamente romana: “As ordenações Filipinas previam a perpetuidade do pátrio poder, até que o filho, legítimo ou legitimado, se tornasse independente do pai, não importando em qual idade tal fato ocorresse”2.
Para Paulo LÔBO, a mulher não ganhou liberdade e nem igualdade com a codificação no Direito de Família em 1916, e o filho resultante da união de um casal era protegido apenas com relação aos seus interesses patrimoniais, não pessoais3.
Após a Revolução Industrial e o ingresso da mulher no mercado de trabalho, entre outros fatores, exigiu-se uma adaptação da legislação à nova realidade social.
Assim, em dezembro de 1977, foi aprovada a Emenda Constitucional que determinava a possibilidade de se colocar fim à sociedade conjugal no Brasil e, também, ao vínculo, o que não era possível anteriormente. A Lei 6.515/1977, do divórcio, derrogou alguns dispositivos do Código Civil de 1916 e deu início às transformações legislativas, como resultado das metamorfoses sociais no país.
Mesmo depois da edição da lei do divórcio, as transformações na sociedade continuaram a ocorrer, de forma que a Constituição Federal (CF) da época também não se adaptava mais às situações presentes na realidade brasileira, e nem era compatível com as outras leis vigentes no país. No âmbito do Direito Familiar, portanto, a CF de 1988 surgiu com uma “nova e mais extensa concepção social e jurídica de família”4.
A Carta Magna (outra forma de se referir à Constituição Federal) de 1988 reconheceu as diversas entidades familiares e, por consequência, abriu espaço para a função contemporânea da família, com um novo paradigma, deixando para trás os interesses meramente patrimoniais de outrora.
Com a CF de 1988, a tutela às instituições familiares presentes na sociedade passou a não resultar, necessariamente, do matrimônio. Por exemplo, o artigo 226 reconhece a união estável, a qual deriva de um relacionamento informal, e, ainda, há a possibilidade de se constituir uma família monoparental, ou seja, “grupos informais chefiados por um homem ou uma mulher sem cônjuge ou companheiro”5. (Você sabia que existem vários “tipos” de família? Clique aqui).
Vale ressaltar que a CF não determina um tipo específico de família a ser protegido. Entende-se, dessa forma, que, mesmo quando não houver previsão legal nesse sentido, podem-se atribuir efeitos jurídicos a quaisquer entidades familiares, já que a redação do artigo permite uma interpretação extensiva do conceito de família.
Entende-se que essas alterações causaram uma relevante mudança no Direito Civil Brasileiro, e, a essa transformação, muitos autores chamam de “constitucionalização do Direito civil”. Isso porque se observou uma valorização da pessoa, da afetividade e, principalmente, uma despatrimonialização de forma geral do Direito, considerando que o patrimônio deixou de ser o bem mais importante a ser tutelado.
Assim, a família deixou de ser somente a biológica e passou a ser aquela constituída pelo afeto, construída no dia a dia.
Ao Estado, cabe, portanto, garantir as condições fundamentais para o desenvolvimento familiar no país. Contudo, não há mais tanta intervenção estatal nas escolhas dos indivíduos, de forma que a família começou a ficar mais democrática, e o cidadão pode optar por constituir sua família da maneira que for mais conveniente para ele, até mesmo em razão da consagração da afetividade.
Arethusa Baroni
Flávia Kirilos Beckert Cabral
Laura Roncaglio de Carvalho
1 O desquite era a forma do rompimento do casal na vigência do Código Civil de 1916, antes da edição da Lei 6.515/1977. Conforme Maria Berenice Dias: “Antes o casamento era indissolúvel e o desquite rompia, porém não dissolvia o casamento. Sabe-se lá o significado dessa distinção, mas o fato é que os desquitados não podiam voltar a casar. Depois de uma luta de um quarto de século, foi aprovado o divórcio, mas com inúmeras restrições. O desquite foi transformado em separação e com igual efeito: não punha fim ao casamento.” DIAS, Maria Berenice. Até que enfim… Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=513>.
2 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005.
3 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A constitucionalização do direito civil. In: FUIZA, César; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire (Coord.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
4 LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais. São Paulo: RT, 1997.
5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. In: Direito de Família e a Constituição de 1988. BITTAR, Carlos Alberto. (Coord.). São Paulo: Saraiva.
Família recomposta e/ou reconstruída
Mas estamos aqui para te contar que a família recomposta é aquela formada por pessoas que já tiveram relacionamentos anteriores – os quais chegaram ao fim por meio do divórcio ou outro meio.
Essa modalidade familiar surgiu em decorrência das transformações sociais que romperam a severidade dos desenhos tradicionais das famílias e permitiram que se desenvolvessem novas entidades familiares, além das formadas somente pelo matrimônio.
Pode-se dizer que a família recomposta representa o pluralismo familiar que é previsto na Constituição Federal, ou seja, merece reconhecimento e proteção jurídica assim como os demais tipos de família (“Você sabia que existem vários ‘tipos’ de família?” Clique aqui!).
Rolf MADALENO1 traz um exemplo de família recomposta, sendo aquela na qual a mulher, depois do divórcio, casa-se novamente:
A partir do casamento podem surgir e é comum que surjam diferentes ciclos familiares experimentados depois da separação, ficando a prole com a mulher em uma nova conformação familiar, dessa feita uma entidade monoparental. Seguindo sua trajetória de vida e, sobrevindo ou não o divórcio, ela se casa novamente ou estabelece uma união estável e passa a constituir uma nova família, que não tem identificação na codificação civil, e passou a ser chamada de família reconstruída, mosaica ou pluriparental. A família reconstruída é a estrutura familiar originada em um casamento ou uma união estável de um par afetivo, onde um deles ou ambos os integrantes têm filhos provenientes de um casamento ou de uma relação precedente.
Ana Carolina Brochado TEIXEIRA e Renata de Lima RODRIGUES2, também mencionam o seguinte sobre o tema:
As famílias que se formam em resultado do rompimento conjugal tornam-se monoparentais. Essa situação pode ter um tempo definido ou não, já que vinculada à recomposição familiar, agregando-se um novo cônjuge ou companheiro àquele núcleo familiar, fazendo que surja, dessa forma, um novo arranjo. As famílias reconstituídas podem ter várias configurações, tais como: (a) o genitor, seu filho e o novo companheiro ou cônjuge, sem prole comum; (b) o genitor, seu filho e o novo companheiro ou cônjuge, com prole comum; (c) os genitores de famílias originárias distintas e seus respectivos filhos, inexistindo prole comum; (d) os genitores de famílias originárias distintas e seus respectivos filhos, com prole comum.
Tem-se, portanto, a necessidade de reconhecer a família recomposta como uma estrutura complexa, já que um novo relacionamento após um divórcio ou após qualquer outra forma de ruptura acarreta a junção de duas famílias com atributos próprios. Assim, para o seu funcionamento de forma harmoniosa, será preciso que cada um dos indivíduos da família anterior aceite a nova formação.
A princípio, não são claros os papéis de cada membro da família recomposta, tampouco os laços com os demais componentes, devendo ser organizada a estrutura familiar com base nas condições dos indivíduos, respeitando-se, por óbvio, as características de cada um.
Esse tipo de família constituiu uma importante fonte de matéria de estudo para as ciências sociais e, embora ela já tenha sido estudada por outros ramos como a sociologia e a psicologia, ainda não há muito material jurídico sobre estas entidades familiares.
Isso porque, em tese, não há relação de parentesco entre os filhos do cônjuge ou do companheiro advindos de uniões anteriores, por exemplo. Apesar disso, entende-se que, quando as pessoas decidem formar uma família recomposta, gera-se um parentesco por afinidade3 entre um dos parceiros do novo casal e os filhos do outro, do mesmo modo que aconteceria com os demais familiares do cônjuge ou companheiro.
Isso não significa, contudo, que o companheiro automaticamente assume o papel de autoridade parental em relação aos filhos do outro:
Um exemplo confirma esta realidade. O novo marido da mãe, ou a nova esposa do pai, não sabe se comporta-se como “um pai”, ou “um amigo” ou “outro adulto da casa”. Esta ambiguidade constitui dificuldade mais significativa das famílias reconstituídas para obter a plena satisfação de seus integrantes. Consequência desta ambiguidade são os conflitos que nascem das expectativas de cada um dos novos conviventes acerca das atitudes do outro em relação aos filhos da união precedente. Exemplos: a nova esposa do pai que pretenda atuar como “mãe” dos filhos de seu marido, educando-os, e estes não lhe reconhecem a autoridade para fazê-lo; ou o novo marido da mãe que pretenda manter-se à margem desta tarefa, quando a mãe aspira que seu novo cônjuge compartilhe esta função. Esta opção é absolutamente irreal porque a convivência dia a dia gera situações que exigem alguma intervenção a respeito das crianças que coabitam com o adulto. Ou, ainda, o cônjuge ou companheiro da mãe ou do pai não deseja compartilhar as funções parentais, mas quer ajudar e ter o direito de opinar, o que corresponde ao exercício indireto da parentalidade4.
Como nem todas as consequências e efeitos jurídicos da formação da família recomposta são fáceis de serem previstos, é preciso que o Judiciário intervenha, fixando, por exemplo, preceitos mínimos que garantam o compromisso daqueles que vivem em tais circunstâncias.
No artigo “‘Pai ou mãe é quem cria’: entenda o que é a parentalidade socioafetiva” (clique aqui), já se discorreu acerca da filiação socioafetiva. Sabe-se, assim, que a essência da socioafetividade é – mais do que o mero sentimento de afeto – o exercício fático das funções de pai ou de mãe, demonstrado pela prática de determinadas condutas objetivas de assistência à prole.
Diante disso, considera-se que a família recomposta é ambiente privilegiado para o aparecimento das relações paterno-filiais e materno-filiais pautadas pela afetividade, na medida em que há convivência e partilha de um espaço comum.
Embora na legislação não haja previsão específica acerca dos eventuais efeitos advindos da relação do filho com padrasto ou madrasta, sabe-se que a relação socioafetiva, depois de reconhecida, gera efeitos, assim como qualquer relação paterno-filial ou materno-filial, independentemente de sua origem.
Desse modo, a eventual constatação da parentalidade socioafetiva, decorrente (ou não) de uma família recomposta, garante ao filho seus direitos e ao pai ou mãe socioafetivo(a) a participação no desenvolvimento da prole.
Vale dizer que, o vínculo socioafetivo poderá ser constituído ainda que não se tenha um desligamento afetivo ou material dos filhos com seus pais biológicos, configurando-se, eventualmente, uma situação de multiparentalidade, a qual é tratada no artigo “Multiparentalidade: entenda esse novo conceito” (clique aqui).
Arethusa Baroni
Flávia Kirilos Beckert Cabral
Laura Roncaglio de Carvalho
1 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
2 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das Famílias entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010.
3 Os parentes por afinidade, ou “afins”, são aqueles que se tornam nossos parentes em decorrência do casamento ou união estável (são parentes naturais do cônjuge ou do companheiro).
4 GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias reconstituídas: novas uniões depois da separação. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.