Sucessão colateral: irmãos unilaterais e bilaterais herdarão de forma igual?

Sucessão é um tema complexo e cheio de variáveis. É sabido que filhos, netos, pais, avós, cônjuges… podem ser herdeiros. Mas, quando a pessoa falecida não deixou nem descendentes, nem ascendentes, nem cônjuge ou companheiro(a) e nem testamento, quem herdará o patrimônio? Os irmãos!

Eles podem ser bilaterais, quando são filhos do mesmo pai e da mesma mãe; ou unilaterais, quando têm apenas um genitor em comum. E, segundo o Código Civil, esta diferenciação tem efeitos para fins de sucessão.

O artigo 1841 do Código Civil prevê que, “concorrendo à herança do falecido irmãos bilaterais com irmãos unilaterais, cada um destes herdará metade do que cada um daqueles herdar”. Ou seja, irmãos bilaterais herdarão o dobro do que caberá aos irmãos unilaterais. Haja conta!

Além da dificuldade de calcular os quinhões de cada herdeiro irmão, há outra questão que chama atenção: esta regra é constitucional? Há quem entenda que sim e quem entenda que não.

Quem entende ser inconstitucional afirma que diferenciar irmãos bilaterais de unilaterais ofende o artigo 227, §6o da Constituição Federal, que proíbe “quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Nesta mesma ótica, está em trâmite o Projeto de Lei n. 7722/2017, que pretende alterar o artigo do Código Civil “para estabelecer a igualdade entre irmãos bilaterais e unilaterais na herança do falecido”.

Acompanhe o andamento do Projeto clicando aqui.

Por outra perspectiva, a constitucionalidade é defendida considerando que existe uma diferença de fato entre irmãos bilaterais e unilaterais, o que justificaria tratamento sucessório desigual.

Essa interpretação parte da ideia de que a existência de dois genitores em comum garante o dobro do direito hereditário em relação ao irmão com um único genitor em comum. O raciocínio assemelha-se, portanto, ao do direito de representação: o irmão recebe o que, em tese, deveria ser do(s) genitor(es) em comum.

Ainda não há um posicionamento dos Tribunais Superiores a respeito deste tema. Portanto, se você é ou defende os interesses de irmão unilateral neste contexto, essa é uma opção de tese jurídica para buscar, judicialmente, a equivalência dos quinhões hereditários em relação aos irmãos bilaterais. Há vasta doutrina que sustenta este entendimento, mas os Tribunais Superiores ainda não se posicionaram sobre o tema.

Por outro lado, caso se entenda pela constitucionalidade e aplicabilidade do artigo 1841 do Código Civil, uma equação pode ajudar no cálculo dos quinhões hereditários, especialmente para aqueles casos em que são vários os irmãos, bilaterais e unilaterais, que concorrerão à partilha.

Exemplo:

Herança de R$350.000,00 (trezentos e cinquenta mil reais) a ser dividida entre 4 irmãos bilaterais e 3 unilaterais.

3x + 2(4x) = 350.000

3x + 8x = 350.000

11x = 350.000

x = 350.000/11

x = 31.818,18

Significa que cada irmão unilateral receberá R$31.818,18, enquanto cada irmão bilateral receberá o dobro, R$63.636,36.

Contraprova:

Os 4 irmãos bilaterais receberão, juntos R$254.545,45

Os três irmãos unilaterais receberão juntos R$95.454,54

A soma total da herança recebida por todos os irmãos é de R$349.999,99

Portanto, cada irmão bilateral receberá o dobro do que caberá ao irmão unilateral, em respeito ao artigo 1.841 do Código Civil.

Se preferir calcular em percentual, basta considerar que “h” corresponderá a 100% da herança:

3x + 2(4x) = 100%

3x + 8x = 100%

11x = 100%

x = 100%/11

x = 9,0909%

Significa que cada irmão unilateral receberá 9,0909% da herança, enquanto cada irmão bilateral receberá o dobro, 18,1818%.

Ufa! Quem buscou o direito para fugir das exatas pode encontrar alguma dificuldade na aplicação do artigo 1841 do Código Civil. Esperamos que esta equação e os exemplos contribuam para otimizar sua atuação profissional!

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Arethusa Baroni
Laura Roncaglio de Carvalho 
Isabella Mady

Separação obrigatória: perguntas e respostas

Recentemente, fomos procuradas pela Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo para respondermos dúvidas relacionadas ao regime da separação obrigatória de bens. Nossas respostas foram publicadas em forma de artigo, e achamos válido compartilhá-las também por aqui, com nossos leitores que acompanham o Direito Familiar, neste formato de “perguntas e respostas”.

1. Em que consiste o regime da separação obrigatória de bens?

Assim como os demais regimes de bens, a separação obrigatória é conjunto de regras patrimoniais, aplicável na relação matrimonial e com efeitos também na sucessão. No entanto, diferente dos outros regimes de bens, a separação obrigatória é de aplicação impositiva. Ou seja, como o nome já diz, deve ser aplicado obrigatoriamente em determinados casos, independentemente da vontade daqueles que casarão. Isso porque há previsão legal de que este seja o regime estabelecido em determinadas situações.

De modo geral, durante o casamento, esta modalidade de regime funcionará da seguinte forma: cada cônjuge manterá o seu patrimônio individual. Não haverá, a princípio, bens comuns, ainda que tenham sido adquiridos durante o casamento. Apesar da semelhança, é importante saber que a separação obrigatória não é igual à separação convencional de bens. A primeira, como explicamos, é impositiva, por força da lei, já a segunda é uma escolha do casal. Além disso, há diferenças no tratamento jurídico (nas regras) de cada um destes regimes em relação à dissolução da relação, inclusive no que se refere aos efeitos sucessórios.

2. Quem é obrigado a se casar neste tipo de regime?

A imposição deste regime acontece nos casos em que i) um dos nubentes for o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer o inventário dos bens do casal e a partilha aos herdeiros; ii) a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; iii) o divorciado, enquanto não tiver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do ex-casal; iv) o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não terminar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas e v) quando um dos noivos contar com mais de 70 anos de idade ou for menor de 18 anos.

No entanto, a lei também prevê a que o regime impositivo seja afastado por decisão judicial, a pedido dos nubentes, se, nas hipóteses i, iii ou iv, restar comprovada a inexistência de prejuízo para o herdeiro, para o ex-cônjuge ou para a pessoa tutelada ou curatelada. Já na hipótese ii o afastamento do regime impositivo dependerá da prova de nascimento de filho ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo de 10 meses.

3. Quais as motivações legislativas para este tipo de regime?

O intuito do regime da separação obrigatória é justamente evitar algum tipo de confusão patrimonial ou prejuízos a um dos cônjuges ou a terceiros. Por exemplo: se algum os cônjuges for divorciado, mas ainda não tiver realizado a partilha de bens da relação anterior, há risco elevado de existir confusão patrimonial caso a nova relação observe o regime de comunhão parcial de bens (que é o mais comum atualmente). E, neste exemplo, até mesmo o ex-cônjuge da relação anterior poderia ser prejudicado. Para evitar esta situação, em vez de impedir (proibir) que estas pessoas se casem, o legislador estabeleceu que o matrimônio poderá ser realizado, desde que se aplique o regime da separação obrigatória de bens.

Na hipótese de casamento de pessoas com 70 (setenta) anos ou mais, em tese o regime da separação obrigatória de bens se justificaria para proteger o patrimônio do idoso. No entanto, esta é uma questão muito polêmica, que, inclusive, será objeto de discussão pelo Supremo Tribunal de Federal.

4. Há direitos envolvidos na separação obrigatória de bens? Se sim, quais seriam estes?

Inicialmente, é importante deixar claro que todo o casamento ou união estável gera direitos e obrigações a ambos os cônjuges ou companheiros(as), independente do regime de bens. Por exemplo: na hipótese de divórcio, o direito de receber alimentos (pensão alimentícia) se comprovada a dependência econômica do cônjuge.

O regime de bens é o que definirá as regras, os direitos e obrigações, referentes ao patrimônio. E, em relação ao regime de separação obrigatória de bens, esta pergunta é tema de inúmeras discussões há anos. Isto porque, por um longo período de tempo, prevaleceu o entendimento de que os bens adquiridos durante a união seriam presumidos como adquiridos pelo esforço comum do casal. Neste caso, existiria o direito à meação em relação a tais bens. Esta situação está prevista na súmula 377 do STF, que diz o seguinte: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”

Porém, inúmeras discussões vieram à tona em relação à presunção do esforço comum, uma vez que, presumir que os bens adquiridos na constância da união são comuns, faz com que o regime obrigatório assemelhe-se ao da comunhão parcial.

Diante disso, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que é necessária a comprovação de participação no esforço para a aquisição onerosa de determinado bem que se pretende partilhar, ou seja, a presunção deixou de ser aplicada (EREsp 1171821/PR). Portanto, dependendo do caso, os envolvidos poderão, ou não, ter direitos sobre eventuais bens.

Outro ponto interessante se refere à sucessão: pessoas casadas sob o regime de separação obrigatória de bens não têm o direito de concorrer à herança do cônjuge caso este tenha descendentes (filhos, netos…). No entanto, caso o falecido não tenha descendentes, o cônjuge sobrevivente terá direito à herança, seja concorrendo com os ascendentes daquele (pais, avós…) ou, se não houve ascendentes, receberá a integralidade do patrimônio.

5. O Supremo Tribunal Federal discutirá em breve se é constitucional o regime da separação obrigatória de bens no casamento de pessoas maiores de 70 anos e a aplicação dessa regra às uniões estáveis. Ao ver das senhoras, essa obrigatoriedade é constitucional? Ou o regime de bens não deve estar atrelado a imposições?

Está é uma questão bastante polêmica.

Como explicamos, a aplicação do regime de separação obrigatória nestas hipóteses se justifica, em tese, para proteger o patrimônio do idoso e a ele próprio, considerando que neste momento da vida eventual perda patrimonial teria impacto muito mais relevante. Também há quem entenda que a medida visa proteger patrimonialmente os descendentes do idoso, privilegiando esta relação familiar em detrimento da nova constituição matrimonial realizada após os 70 anos. A justificativa se sustenta no artigo 5º, inciso XXII e XXX da Constituição Federal, que alçam o direito à propriedade e à herança como fundamentais.

Por outro lado, esta justificativa parte da perspectiva de que a pessoa com 70 anos (ou mais) é cognitivamente vulnerável e, de certa forma, incapaz de autodeterminar-se livremente. Ou seja, a legislação neste termos pressupõe que este idoso não tem plenas condições de decidir sobre si próprio, o que ofenderia o princípio da dignidade humana (artigo 1º, III da CF), a vedação à discriminação contra idosos (artigo 3º, IV, CF), a proteção às uniões estáveis (artigo 226, §3º da CF) e o dever de amparo às pessoas idosas (artigo 230, CF).

Impor o regime de bens significa restringir a liberdade dos noivos. E, como toda a restrição de liberdade, é fundamental que haja uma justificativa sólida e consonante com o ordenamento jurídico pátrio. Portanto, entendemos que a discussão a ser enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal é muito relevante e necessária.

Sobre nossa opinião, entendemos que é Inconstitucional. É dever do Estado, previsto inclusive no Estatuto do Idoso, promover medidas de proteção patrimonial à pessoa idosa. No entanto, pressupor a incapacidade da gestão patrimonial em razão da idade para impedir o direito de escolha do regime de bens, significa promover discriminação etária. Entendemos que a resposta para esta questão não deve estar na restrição da liberdade de escolha, mas sim na promoção de uma escolha consciente.

Para tanto, nossa sugestão é permitir que o regime de separação obrigatória fosse afastado por meio de pacto antenupcial ou contrato de união estável. Neste caso, o casal conhecerá os regimes de bens, avaliará sua realidade e decidirá de forma consciente pelo que melhor se adéque. Evidentemente, é recomendado que haja orientação por um profissional especializado em Direito das Famílias.

Não sendo realizado o pacto antenupcial ou o contrato de união estável para o afastamento da separação obrigatória, ela será aplicada. Assim, entendemos que haveria um tratamento jurídico diferente para casamento de pessoas com setenta anos ou mais, mas isto não significaria uma restrição da liberdade de escolha e manteria o objetivo de proteção que foi o intuito do legislador.

Arethusa Baroni

Laura Roncaglio de Carvalho

Isabella Mady

O regime da separação obrigatória de bens (atualizações)

Assim como os demais regimes de bens, a separação obrigatória é conjunto de regras patrimoniais, aplicável na relação matrimonial e com efeitos também na sucessão. No entanto, diferente dos outros regimes de bens, a separação obrigatória é de aplicação impositiva. Ou seja, como o nome já diz, ela deve ser aplicada obrigatoriamente em determinados casos previstos na lei, independentemente da vontade dos noivos. Esta regra está colocada no artigo 1.641 do Código Civil.

De modo geral, durante o casamento, esta modalidade de regime funcionará da seguinte forma: cada cônjuge manterá o seu patrimônio individual. Não haverá, a princípio, bens comuns, ainda que tenham sido adquiridos durante o casamento.

Apesar da semelhança, é importante saber que a separação obrigatória não é igual à separação convencional de bens, já explicada no artigo “Regime da separação Total de Bens” (clique aqui). A primeira é impositiva, por força da lei, já a segunda é uma escolha do casal. Além disso, há diferenças no tratamento jurídico (nas regras) de cada um destes regimes, no que se refere à dissolução da relação, inclusive quanto aos efeitos sucessórios.

Veja a seguir os casos em que é aplicada a separação obrigatória de bens:

1. Quando o casamento é realizado por pessoas que, na realidade, não poderiam se casar:

a) o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer o inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;

b) a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal

c) o divorciado, enquanto não tiver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do ex-casal;

d) o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não terminar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas.

Importante esclarecer que, nestas situações demonstradas, o regime impositivo pode ser afastado a pedido dos nubentes se, nas hipóteses “a”, “c” ou “d”, for comprovada a inexistência de prejuízo para o herdeiro, para o ex-cônjuge ou para a pessoa tutelada ou curatelada. Já na hipótese “b”, o afastamento do regime impositivo dependerá da prova de nascimento de filho ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo de 10 meses.

2. Quando um dos noivos (ou os dois) for maior de 70 anos:

Até o ano de 2010, esta idade era de 60 anos, quando então foi alterada a lei, passando a ser obrigatório este regime de bens para as pessoas maiores de 70 anos.

A imposição deste regime nestes casos, tem a intenção de proteger o patrimônio do idoso e a ele próprio, considerando que neste momento da vida eventual perda patrimonial teria impacto muito mais relevante. Também há quem entenda que a medida visa proteger patrimonialmente os descendentes do idoso, privilegiando esta relação familiar em detrimento da nova constituição matrimonial realizada após os 70 anos.

Esta norma é criticada por alguns operadores do Direito de Família, pois impede a pessoa maior de 70 anos de dispor livremente sobre sua vida e sobre seus bens. É importante ressaltar que a idade avançada, por si só, não é causa de incapacidade, não justificando, portanto, a necessidade de imposição do regime legal. Apesar disso, persiste a previsão legal.

A questão é polêmica e, inclusive, será objeto de discussão pelo Supremo Tribunal de Federal, que decidirá se a imposição do regime de bens da separação para pessoas com mais de 70 anos é constitucional ou não.

3. Quando o casal precisar de suprimento judicial para poder casar:

Este tipo de situação ocorre quando a pessoa menor de idade pretende se casar, mas não tem o consentimento de um ou de ambos os pais, necessitando, portanto, de uma autorização judicial para realizar o casamento. Se esta autorização judicial for concedida, o regime de bens será o da separação legal.

Maria Berenice DIAS1, referência para o Direito de Família, ensina que esta obrigatoriedade existe para mostrar a insatisfação do legislador (aquele que faz a lei) com aqueles que se casam mesmo quando a lei sugere que não o façam, impondo assim, alguns “castigos” em relação ao patrimônio do casal.

Vale acrescentar que, desde março de 2019, pessoas com menos de 16 anos não podem casar sob nenhuma circunstância.

Menores de idade podem se casar? Confira o artigo sobre o assunto (clique aqui).

Assim, conforme dito acima, durante a relação o regime da separação obrigatória de bens funcionará de forma semelhante ao regime da separação total de bens (clique aqui).

Ao longo dos anos houve muita discussão a respeito das regras aplicáveis na dissolução das relações regidas por este regime de bens.

Por um longo período de tempo, para evitar que um dos cônjuges enriquecesse às custas do outro, prevaleceu o entendimento de que os bens adquiridos durante a união seriam presumidos como adquiridos pelo esforço comum do casal. Neste caso, existiria o direito à meação em relação a tais bens. Esta situação está prevista na súmula 377 do STF, que diz o seguinte: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

Porém, inúmeras discussões vieram à tona em relação à presunção do esforço comum, uma vez que, presumir que os bens adquiridos na constância da união são comuns, faz com que o regime obrigatório assemelhe-se ao da comunhão parcial.

Regime da Comunhão parcial de bens – clique aqui para ler.

Diante disso, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que é necessária a comprovação da participação no esforço para a aquisição onerosa de determinado bem que se pretende partilhar, ou seja, a presunção deixou de ser aplicada (EREsp 1171821/PR). Portanto, dependendo do caso, os envolvidos poderão, ou não, ter direitos sobre eventuais bens.

Outro ponto interessante se refere à sucessão: pessoas casadas sob o regime de separação obrigatória de bens não têm o direito de concorrer à herança do cônjuge caso este tenha descendentes (filhos, netos…). No entanto, caso o falecido não tenha descendentes, o cônjuge sobrevivente terá direito à herança, seja concorrendo com os ascendentes daquele (pais, avós…) ou, se não houve ascendentes, receberá a integralidade do patrimônio.

Embora haja certa discussão sobre alguns aspectos da separação obrigatória de bens, sendo a sua aplicação justa ou não, essas são as regras contidas na lei em relação ao referido regime de bens até o presente momento. Caso haja alguma novidade sobre o assunto, atualizaremos este artigo!

Arethusa Baroni

Laura Roncaglio de Carvalho 

Isabella Mady

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1 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias . 9ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

TJDFT decide: ex-cônjuge não é obrigado a dividir gastos de cachorro com o qual não convive

No artigo “Guarda de animais de estimação” (clique aqui), explicamos que no Brasil, ainda não há uma legislação específica para regulamentar tais situações, envolvendo os cuidados com animais de uma família depois da eventual ruptura das partes. O projeto de lei nº. 542/2018, que versa sobre a matéria, está em trâmite.

Apesar disso, em muitos casos a jurisprudência vem antes da legislação, pois as questões chegam ao Judiciário, que precisa decidir sobre tais demandas, mesmo não havendo previsão legal específica.

Volta e meia, nos deparamos com notícias sobre casos envolvendo os animais, isso no âmbito do Direito de Família.

Recentemente, a 6ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT negou, em unanimidade, o pedido realizado por uma mulher para que seu ex-marido fosse obrigado a dividir gastos com cachorro com o qual não convive mais.

O animal de estimação, portador de leishmaniose, era de propriedade de ambos enquanto casados, porém a desarmonia entre o ex-casal impossibilitou a convivência do réu com o cachorro.

A autora alegou que possui diversas despesas com o animal e que, durante o casamento, o casal não media esforços para proporcionar o melhor tratamento e atender todas as necessidades do cachorro, devendo tal comportamento continuar após o divórcio.

Segundo o réu, a autora exigiu pagamento de um alto valor pelo cachorro e suas despesas. O homem concordou em pagar as despesas até o divórcio e, depois disso, mencionou que arcaria somente com o tratamento da leishmaniose.

Ele reforçou, porém, que a autora estava negando o acesso dele ao animal, motivo pelo qual renunciou ao seu direito de condômino, isentando-se do pagamento de dívidas (art. 1316 do CC).

No entendimento da Turma, diante da inviabilidade do compartilhamento do convívio e da falta de regulamentação da propriedade do animal na partilha de bens, incumbe àquele que assumiu sua posse exclusiva após o divórcio a integralidade das despesas com seu custeio.

Considerou-se, pois, que o animal seria um bem que não chegou a ser partilhado, mas quem manteve a sua posse ficou responsável por arcar com suas despesas.

Processos que envolvem animais de estimação estão cada vez mais comuns. Muitos falam em humanização dos bichos. Qual sua opinião sobre o assunto?

Arethusa Baroni

Laura Roncaglio de Carvalho 

Isabella Mady

Perguntas e respostas: vacinação de crianças contra a COVID-19

1. O que diz a nossa legislação sobre a vacinação de crianças no geral, ela é obrigatória?

De acordo com o artigo 14, §1o do ECA, é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

As vacinas recomendadas pelas autoridades sanitárias são aquelas previstas no PNI (Programa Nacional de Imunização). Portanto, se não houver recusa justificável, com algum fundamento científico, as crianças e adolescentes devem ser vacinadas conforme o calendário do PNI.

Para acessar o PNI, clique aqui.

2. O que pode acontecer se uma criança não for vacinada?

Nos casos em que a vacinação que é considerada obrigatória não acontece, as instituições de ensino, médicos, familiares ou conhecidos podem informar a situação às autoridades (Ministério Público ou Conselho Tutelar, por exemplo), para que seja averiguada e para que sejam tomadas, eventualmente, as medidas cabíveis.

É preciso ter em mente que existe o que se chama de “rede de apoio” que visa garantir que os direitos das crianças e adolescentes sejam sempre resguardados. A comunicação de que uma criança não está recebendo as vacinas tidas como essenciais pode ensejar que o estado verifique se ela não está em uma situação de risco, tendo os cuidados com sua saúde negligenciados.

Pensemos na seguinte situação: uma criança não recebeu as vacinas, a escola foi comunicada e informou a circunstância ao Conselho Tutelar. O Conselho Tutelar enviou os profissionais à residência daquela criança e, assim, evidenciou que, além de não ter recebido as vacinas, a criança está sem condições básicas de higiene, em um ambiente insalubre, sem receber a atenção que precisa no que diz respeito à saúde de um modo geral. Nesse caso, poderão ser tomadas medidas mais severas em relação àqueles pais que não estão prestando os elementos necessários ao desenvolvimento sadio do filho ou filha.

Pode ser que o Conselho Tutelar envie os profissionais à residência da criança e constate que, em que pese não tenha recebido as vacinas, não chegou a se caracterizar uma situação de risco. Nesse caso, não serão aplicadas as mesmas medidas que seriam nas circunstâncias mencionadas acima.

Contudo, trazemos o exemplo para que entendam que a questão da vacina seria só uma forma de “alerta” às instituições e autoridade e que, havendo indícios, cabe à “rede de apoio” investigar o que for preciso para garantir que a criança esteja bem atendida no seio familiar em que se encontra.

3. E quais podem ser as medidas tomadas pelas autoridades se os pais não vacinarem seus filhos?

No que tange à vacinação em si, na prática, tem-se que, na ausência de vacinação, os Conselhos Tutelares podem ser comunicados e as Varas da Infância também. Não há como o estado interferir ao ponto de retirar a criança de sua residência à força e encaminhá-la para vacinação – pois isso seria até mesmo contrário à integralidade física da criança e do adolescente.

Apesar disso, conforme mencionado na questão “2”, deverá ser verificada a questão como um todo, diante do sinal de que pode haver uma situação de risco maior ali. Caso somente esteja em falta a vacinação, podem ser aplicadas advertências e multas, por exemplo.

Nos casos mais graves, contudo, em que houver uma negligência de direitos, pode ser inclusive proposta uma ação penal por crime de maus tratos e/ou um pedido de destituição da autoridade parental, pela situação de vulnerabilidade presente no contexto em que vive aquela criança.

Para ler mais sobre destituição da autoridade parental, clique aqui.

4. Sobre a vacinação contra o COVID-19, o que pode ser feito se os pais não entram em consenso sobre vacinar ou não?

É lamentável que os pais não consigam entrar em consenso sobre a vacinação dos filhos. Caso isso venha a acontecer e não seja possível que eles resolvam por meio do diálogo, ainda que com a intermediação de terceiros, de familiares, de psicólogos, de médicos… aí o caminho será mesmo comunicar a situação às autoridades como o Conselho Tutelar, para que ele verifique o que seria possível de acontecer no caso.

Eventualmente, havendo algum processo em trâmite, de divórcio ou de guarda, a questão pode ser levada para que o juízo analise e profira uma decisão sobre o assunto. Porém, essa deveria ser a última medida, já que coloca “nas mãos” de um terceiro ou de alguém que sequer faz parte da família a decisão sobre a saúde daquela criança.

Sabe-se que o COVID-19 é uma doença nova e, por isso, os estudos sobre a vacina são igualmente recentes, o que justifica o receio de muitos pais quanto à vacinação e seus efeitos. Por outro lado, também há a preocupação de que os filhos sejam contaminados por uma doença que ainda é muito desconhecida.

5. Como a vacina contra o COVID-19 ainda não foi incluída no PNI (Programa Nacional de Imunização), ela pode ser considerada obrigatória como as demais que já foram incluídas?

Primeiramente, é preciso ressaltar que a visão deste artigo diz respeito aos aspectos jurídicos (e não médicos-científicos) da vacinação, pois é sabido que há ampla discussão sobre o tema em outras áreas.

Posto isso, é de se dizer que, para o Direito, as vacinas obrigatórias para as crianças estão previstas no PNI, que existe desde 1977 e vem sendo atualizado no decorrer dos anos. A vacina do COVID-19 ainda não foi incluída no programa, o que gera, portanto, muitas dúvidas nas pessoas acerca da obrigatoriedade dessa vacinação ou não.  

Embora haja discussão meio científico, o que temos é que, no Brasil, a autoridade sanitária maior é a ANVISA, e ela já recomendou a vacinação em crianças para o COVID-19, por exemplo.

Além disso, em julgado do STF (1267879), já constou que é constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio das vacinas que tenham sua aplicação prevista no programa nacional de imunização, bem como que tenham sua aplicação considerada obrigatória por lei ou por determinação da união, estados e municípios, com base em consenso médico-científico.

Diante disso, e das demais recomendações de outras instituições (Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público, Fórum Nacional da Justiça Protetiva…), podemos entender pela obrigatoriedade. O Ministério da Saúde, contudo, manifestou-se contrário à obrigatoriedade, salvo se por recomendação médica.

É importante ressaltar que, a vacinação obrigatória não seria a mesma coisa que vacinação forçada. Ou seja, o estado não pode bater na casa de cada cidadão, “arrancar” a criança dali e levá-la à força para ser vacinada – até porque seria, como já dito, uma violação de sua integridade.

Apesar disso, a obrigatoriedade faz com que haja consequências para a não vacinação, já que faz parte do direito à saúde, que deve ser resguardado com maior afinco na infância, independente das convicções pessoais dos genitores.

Arethusa Baroni

Laura Roncaglio de Carvalho

Dupla maternidade: casos de inseminação artificial caseira

A inseminação artificial caseira acontece quando quem pretende engravidar utiliza o material genético do doador e o insere (geralmente com uma seringa) para tentar a fecundação, sem que seja mantida uma relação sexual.

Para facilitar a visualização sobre uma situação assim, segue o exemplo de um caso prático: um casal homoafetivo de duas mulheres, vivendo em união estável[1], deseja ter um filho (ou filha), porém, não possui condições de arcar com os custos de uma reprodução assistida realizada por meio de clínicas médicas.

Assim, decidem utilizar o material genético de um terceiro, a fim de que uma delas engravide. Nesse caso, quem será considerada mãe? Quais são as implicações de tal conduta?

Existem duas principais situações que podem surgir relacionadas à inseminação artificial caseira: a) o filho já nasceu, possui certa idade, e desenvolveu uma relação de afetividade com a companheira não gestante – o que autorizaria o reconhecimento do vínculo familiar pela socioafetividade; ou b) a criança ainda não nasceu, mas deve ser pleiteada autorização judicial para que se registre a maternidade de ambas companheiras quando de seu nascimento – caracterizando-se, então, a dupla maternidade.

Como se sabe, o conceito de família independe do gênero e da sexualidade das pessoas que a compõem, conforme reconheceu a Suprema Corte no julgamento da ADPF nº 132: “A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão ‘família’, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. […] Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família” (ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 5-5-2011).

Além disso, as várias mudanças de comportamento na sociedade atual resultaram em transformações nas suas estruturas de convívio, notadamente a familiar.

Assim, o Direito de Família passou a reconhecer a afetividade como elemento identificador dos vínculos familiares, desprendendo-se da verdade biológica ou registral, para reconhecer a socioafetividade como parâmetro em lides que se discutem a parentalidade.

É nesse contexto que o fenômeno da inseminação artificial heteróloga – com material genético doado por um terceiro – encontra guarida, pois a parentalidade, que antes era obtida apenas biologicamente ou gestacionalmente, passou a ser obtida também por meio dos laços de afetividade.

Voltando a atenção ao caso mencionado, de “inseminação artificial caseira”, tem-se que seria uma forma de inseminação heteróloga, porém, sem a participação de profissionais da saúde (clínicas médicas de reprodução assistida).

O método da inseminação artificial caseira, vale dizer, não é cientificamente reconhecido e tampouco recomendado, ainda que seja realizado com intuito admirável e em decorrência da falta de recursos financeiros. No referido formato de reprodução, há maiores riscos para a saúde da mulher, tais como a transmissão de doenças, tendo em vista a introdução de material biológico sem avaliação adequada.

Afora isso, o Conselho Federal de Medicina, na Resolução 2013/2013, determina que a doação de material genético deve ser anônima e sem trocas financeiras entre as partes. Os pais também precisam ter, no máximo, 50 anos de idade. Tais circunstâncias, contudo, não são fiscalizadas quando é feita a inseminação caseira.

Nessa situação, ao contrário do que acontece nas inseminações artificiais com acompanhamento médico, o doador não costuma ser completamente anônimo e há o risco, pois, de que o genitor venha a reivindicar o reconhecimento da paternidade em algum momento.

Existem os casos nos quais o material genético é recebido porque as pessoas buscam em grupos aqueles interessados em realizar a doação. Há quem opte, inclusive, por realizar um contrato, no qual o doador “abre mão” de seus direitos relacionados à paternidade. Apesar disso, a validade jurídica do documento está condicionada a um julgamento isolado, já que envolve menores de idade e o procedimento não é regulamentado aqui no Brasil.

As resoluções do Conselho Federal de Medicina regulamentam, de certo modo, as reproduções assistidas no Brasil, todavia, acerca das situações nas quais não há a participação de médicos – como na inseminação caseira – não podem ser aplicadas tais resoluções.

Afora isso, o Provimento 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, possibilitou o reconhecimento extrajudicial das filiações socioafetivas e registro dos filhos havidos por métodos de reprodução assistida, mas não tratou da inseminação caseira. No referido provimento, são exigidos diversos documentos que aqueles que realizam a inseminação caseira não poderão apresentar (como documentos médicos).

Restando pendente de regulamentação a dupla maternidade em caso de nascimento de criança gerada por inseminação caseira, é somente por meio de uma determinação judicial que se torna possível a realização do registro em nome daquelas que pretendem o projeto parental.

Apesar de ser um tema polêmico, com diversos desdobramentos, a inseminação caseira já conta com adeptos no país, cabendo ao Direito, então, responder as causas que surgirem, mesmo que novas e inusitadas – sob pena de omissão da tarefa da prestação jurisdicional.

Em que pese não haja uma regulamentação na qual se enquadre a inseminação caseira, também não há previsão de penalidades quando da sua realização, até porque o CFM não é um órgão legislativo. Contata-se, portanto, uma “lacuna”.

O fato de não existir regramento que ampare a inseminação artificial caseira não pode servir, contudo, no entender do Direito Familiar, como fundamento para que as famílias originadas deste procedimento sejam impedidas de receber proteção jurisdicional.  

Nesse sentido, compartilha-se o entendimento do Elton COSTA, servidor junto ao TJMA[2]:

“Como a efetivação, na prática, da tutela jurisdicional protetiva do afeto e da pluralidade das conformações familiares, bem assim que não podemos olvidar, jamais, das situações reais vivenciadas pelas pessoas, tampouco ignorar as consequências jurídicas dessas relações. O Direito das Famílias não se revela contemplativo quando observado tão somente sob a fria letra da lei, muito menos sob a gélida ótica da sua ausência. O fato de não existir regramento legal que ampare a inseminação artificial caseira não pode servir como fundamento para que as famílias originadas deste procedimento sejam impedidas de receber o seu devido amparo jurídico. Em suma, família é amor, é afeto, é busca pela felicidade dos seus integrantes e não nos cabe – sociedade e/ou Estado-juiz – questionar de que modo ela se configura”.

Como se sabe, o Direito é um fenômeno sujeito à mutabilidade de conceitos sociais e precisa adaptar-se às mudanças de costumes.

Impedir o reconhecimento da dupla maternidade, por não ter a inseminação artificial sido realizada em uma clínica, centro ou serviço de reprodução humana violaria, pois, de forma frontal os princípios constitucionais da isonomia e da proteção à família, positivados nos artigos 5º, inciso I, e 226, caput, da Constituição Federal.

Isso não quer dizer, contudo, que eventual decisão judicial autorizando o pedido de dupla maternidade será proferida sem observar nenhum critério. Em qualquer ocasião, entende-se que o juízo deve avaliar alguns pontos relacionados ao caso, antes de decidir. Por exemplo, caso o bebê ainda não tenha nascido, deve-se verificar como se deu a construção daquele plano parental, e se contou com a manifestação de vontade expressa de ambas as envolvidas.

Caso se esteja a pleitear o reconhecimento da maternidade socioafetiva por aquela que não gestou, os requisitos a serem averiguados serão os mencionados no texto “’Pai ou mãe é quem cria!’: entenda o que é a parentalidade socioafetiva” (clique aqui).

Arethusa Baroni

Laura Roncaglio de Carvalho

___________________

[1] Se falássemos em casamento, abriríamos outra discussão, sobre a presunção da paternidade/maternidade, que não deve ser o foco do presente texto.

[2] Disponível em: https://ocivilista.com.br/2020/12/19/sentenca-sobre-inseminacao-artificial-caseira-no-maranhao/

A busca dos direitos das mulheres no mundo

A violência contra a mulher já foi abordada no Direito Familiar em outros artigos (clique aqui para ler) e, inclusive, tratou-se sobre os motivos que levaram à criação de uma lei específica para a proteção de mulheres no Brasil (clique aqui). Sempre que tais assuntos são abordados, surgem algumas discussões polêmicas.

Por isso, no presente artigo – apesar de não ser um tema relacionado diretamente ao Direito de Família – resolvemos abordar a questão de uma forma mais global, trazendo como exemplos alguns dos movimentos mais importantes e históricos de outros países, que buscavam  o reconhecimento de direitos às mulheres, diminuindo todas as formas de violência em relação a elas. Se você gosta de história, continue lendo!

Aproveitando, para que se tenha uma noção melhor sobre tudo que falaremos adiante, recomendamos a leitura de dois artigos nossos: “Histórico da posição social feminina no Brasil” (clique aqui) e “Uma análise da história da mulher na sociedade” (clique aqui).

Depois de analisar fatos e períodos históricos relacionados ao papel da mulher na sociedade, fica nítido que a violência contra as mulheres sempre foi presente, devido a posição de inferioridade que ocupavam e ocupam em relação aos homens, desde os períodos mais remotos e, infelizmente, até os dias atuais – ainda que haja muita luta para se combater desigualdades.

Lembrando um pouco do contexto histórico, tem-se que um dos momentos mais relevantes de insatisfação das mulheres quanto à sua posição social ocorreu na Revolução Francesa. Nesse período, a mobilização feminina passou a ser discutida e, assim, tornou públicas as vivências diárias de desvantagem, de violência e injustiça nas relações entre homens e mulheres.

Em 1791, surgiu na França a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, redigida por Olympe de GOUGES (ativista política), e esse é um dos mais importantes documentos que se contrapõe à restrição masculina do conceito de igualdade1. O seu principal objetivo era pôr fim à predominância dos homens, tanto no espaço público quanto no privado, e fazer com que as mulheres passassem a ter autonomia2.

No período anterior à Revolução Francesa, as mulheres se mantiveram sempre ao lado do homem, mas não viram as conquistas políticas desdobrarem-se a elas. A partir desse momento, porém, as mulheres passaram a reivindicar seus direitos de cidadania, e o movimento feminista adquiriu um discurso próprio, afirmando a especificidade da luta da mulher3.

O feminismo pode ser definido, segundo Jane MANSBRIDGE (cientista política americana), como o compromisso de pôr fim à dominação masculina. Não é apenas um discurso, é a busca pela definição ou redefinição da identidade das mulheres, diferenciando-as dos homens, bem como assegurando as especificidades delas4.

O ponto crucial do feminismo é a defesa dos direitos da mulher, que pode ser vista como uma extensão do movimento pelos direitos humanos. As mulheres querem ser vistas como seres humanos, e não serem rotuladas como uma coisa, um objeto5.

Somente nos anos de 1930 e 1940 é que, efetiva e formalmente, algumas das reivindicações das mulheres passaram a ser atendidas. Elas começaram a ser reconhecidas como cidadãs, podiam ingressar nas escolas, trabalhar, e ainda adquiriram o direito de votar e serem votadas.

Nesse período, Simone BEAUVOIR (escritora, filósofa, feminista, ativista política) escreveu o livro “Segundo sexo” que trata, em certa medida, da desigualdade entre homens e mulheres. Ela aprofundou seus estudos no que diz respeito ao desenvolvimento psicológico da mulher, bem como as subordinações que o gênero feminino sofria/sofre nesse período de socialização.

Para BEAUVOIR, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, ao passo que os termos “feminino” e “masculino” são criações culturais, tendo em vista o entendimento de que cada gênero deve cumprir funções peculiares e diferentes6.

A partir do movimento feminista e da sua luta pelos direitos das mulheres, que não mais queriam ser vistas como objetos, mas sim como sujeitos, e tornarem-se cidadãs, é que a violência praticada contra elas passa a ser exteriorizada para o espaço público7.

Pode-se dizer que, outrora, a violência doméstica era invisível, pois era pouco divulgada, não era objeto de estudo de políticas públicas, não tinha um nome, não gerava polêmica, estava somente limitada aos debates feministas8.

Os grupos feministas fizeram com que muitos governos e organizações internacionais prestassem mais atenção ao problema da violência contra as mulheres,  tornando esse assunto uma das pautas nas agendas desses órgãos9.

Em 1975, na primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres, na cidade do México, foi discutida a questão do conflito dentro da família. No ano de 1979, na Assembleia Geral da ONU, foi aprovada a convenção que versava sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres.

Em 1980, na segunda Conferência Mundial sobre as Mulheres, foram abordados de maneira objetiva os problemas de mulheres agredidas e também a violência doméstica, passando então a ser adotada uma resolução a respeito do assunto.

Na quinta Conferência Regional da Eclac, em 1991, a violência doméstica passou a ser vista como um obstáculo para o desenvolvimento das mulheres.

Em 1993, na Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em Viena, a violência contra a mulher passou a ser efetivamente reconhecida como violação aos direitos humanos. Nesse mesmo ano, na Declaração da ONU sobre a eliminação da violência contra as mulheres, deu-se real importância ao assunto, considerando de extrema urgência a necessidade de aplicar a todas as mulheres os direitos de todos os seres humanos, tais como: liberdade, igualdade, dignidade e integridade.

No ano seguinte (1992), na Convenção Interamericana sobre prevenção, punição e erradicação da violência contra as mulheres, foi considerado que o reconhecimento e respeito aos direitos das mulheres são de suma importância para o seu desenvolvimento como pessoa, além se ser o caminho para uma sociedade mais justa e unida10.

A importância que passou a ser dada ao assunto fez surgir em diversos países muitos métodos de combate à violência contra a mulher, de modo que se pode concluir que as revoluções não foram em vão.

A luta contra a violência não pode ser deixada de lado, pois faz parte do desenvolvimento da sociedade e a violência doméstica gera consequências tanto no aspecto social, quanto econômico e político11 dos países.

A intenção primordial do movimento feminista não é melhorar a relação entre os gêneros feminino e o masculino, mas sim estabelecer a igualdade entre eles. Por terem sido – e ainda serem – vítimas dos homens, as mulheres necessitam de uma lei que as proteja especialmente.

A busca pela igualdade deve ser feita na medida das diferenças entre os gêneros, ou seja, devem ser levadas em consideração algumas diferenças para que se alcance a efetiva igualdade12. Em outras palavras, as diferenças existentes entre homens e mulheres não servem de justificativas para a manutenção da desigualdade.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho


1 GERHARD, Ute. Sobre a liberdade, igualdade e dignidade das mulheres: o direito “diferente” de Olympe de Gouges. In: BONACCHI, Gabiella; GROPPI, Angela. (Ed.). O dilema da cidadania: direito e deveres das mulheres. São Paulo: Afiliada, 1994.

2 GERHARD, Ute. Sobre a liberdade, igualdade e dignidade das mulheres: o direito “diferente” de Olympe de Gouges. In: BONACCHI, Gabiella; GROPPI, Angela. (Ed.). O dilema da cidadania: direito e deveres das mulheres. São Paulo: Afiliada, 1994.

3 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

4 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

5 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

6 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

7 SANTOS, Maria de Fátima de Souza. Representações sociais e violência doméstica. In: SOUZA, Lídio De. TRINDADE, Zeidi Araujo. (Orgs.) Violência e exclusão: convivendo com paradoxos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

8 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

9 LARRAÍN, Soledad. Reprimindo a violência doméstica: duas décadas de ação. In: MORRISON, Andrew R.; BIEHL, María Loreto. (Eds.). A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

10 LARRAÍN, Soledad. Reprimindo a violência doméstica: duas décadas de ação. In: MORRISON, Andrew R.; BIEHL, María Loreto. (Eds.). A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

11 LARRAÍN, Soledad. Reprimindo a violência doméstica: duas décadas de ação. In: MORRISON, Andrew R.; BIEHL, María Loreto. (Eds.). A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

12 BADINTER, Elisabeth. Rumo equivocado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Uma análise da história da mulher na sociedade

No artigo “Breve histórico da família no Brasil” (clique aqui), o Direito Familiar fez uma análise do desenvolvimento da família brasileira ao longo dos anos. Além disso, em outros textos, tratou-se sobre a questão da violência de gênero, assunto muito pertinente pois, infelizmente, faz parte da rotina dos noticiários no mundo inteiro.

Para ler os artigos, clique aqui.

No presente artigo, queremos compartilhar um pouco sobre o histórico da mulher na sociedade como um todo, que foi, e ainda é, marcado por grandes lutas pelos seus direitos. A mulher sempre foi alvo de discriminações e muitas vezes foi submissa aos homens e parceiros, devido a uma sociedade que constantemente se desvendou machista.

Durante séculos, perdurou a imagem da mulher em condições equivalentes à de escrava, numa época em que ser livre significava, basicamente, ser homem. As funções primordiais femininas eram a reprodução, a amamentação e a criação dos filhos.

Analisando o período medieval, tem-se que o tratamento para com as mulheres não se fez de outro modo, pois elas eram governadas pelo simples fato de serem mulheres. A morte, o trabalho e o sofrimento inseriram-se no mundo em decorrência da existência delas, e o controle sobre elas, bem como os castigos recebidos, eram atribuições dos homens1.

Aristóteles (filósofo grego) explica que essa submissão das mulheres aos homens, deu-se pela superioridade da autoridade masculina diante das vontades do casal, bem como da necessidade de as mulheres se guardarem no interior da família, cumprindo o papel de mãe e dando educação aos filhos. Segundo ele, elas não poderiam conduzir seus desejos e as relações com outros, pois quem cumpria o papel de sobrepujá-las era o homem2.

Um marco no que diz respeito à história das mulheres durante a Idade Média foi a perseguição a elas, mais conhecida como “caça às bruxas”. Foi um genocídio praticado contra o sexo feminino, na Europa e nas Américas, em que muitas mulheres sofreram agressões e até mesmo perderam suas vidas por serem consideradas feiticeiras.

Na verdade, as “bruxas” eram mulheres que agiam contra o “tradicional” e questionavam o sistema. Por isso, era preciso achar um motivo para que a sociedade se voltasse contra elas, a fim de que fossem queimadas – basicamente – por serem do sexo feminino.

Jacques Sprenger, inquisitor, publicou no final do século XV (15) um “manual da caça às bruxas”, no qual fazia referência aos textos sagrados que mencionavam a criação da mulher, justificando sua inferioridade, em decorrência de a primeira delas ter se formado de uma costela defeituosa de adão, sendo, por tal motivo, um ser vivo imperfeito3.

Não se pode negar que a sociedade da Idade Média era uma sociedade masculina, e os interesses giravam em torno dos homens4. No final da Idade Média começaram a surgir códigos que se referiam também à esfera feminina, mas a maior parte deles continha regras específicas que impunham restrições aos direitos das mulheres, tanto dentro quanto fora da família, atingindo a esfera pública e a privada. O que mais chamava atenção nessas legislações era a evidência da inferioridade das mulheres perante os homens5.

No final do período medieval, as mulheres passaram a assumir importante papel no desenvolvimento econômico das cidades. Surgiu um novo modelo de relação de trabalho, tendo em vista o alto crescimento da economia urbana, e as mulheres passaram a ser inseridas nesse espaço, que visava intercalar trabalho e cotidiano, no qual, com o casamento, o homem e a mulher formariam um núcleo de atividade econômica6.

Por mais que essa porta tenha sido aberta e tenha surgido a possibilidade de as mulheres alcançarem independência social e profissional, ainda havia conflitos com os ditames impostos pela economia, pela política e pelas mentalidades. Permanecia a grande ideia de a formação da mulher ser voltada para a área da família e da economia doméstica, não havendo a possibilidade de ter uma formação profissional ou científica7.

No período renascentista (séc. XIV (14) a séc. XVI (16)) o trabalho feminino também foi depreciado. As mulheres que trabalhavam eram desvalorizadas, mas nem por isso deixaram de exercer suas atividades, pois as necessidades materiais de sobrevivência exigiam que assim fosse8.

Essa desvalorização acarretava o recebimento de remuneração inferior à dos homens, e, consequentemente, havia a exploração da mão de obra feminina para que houvesse maior acumulo de capital.

A mulher, portanto, não foi afastada do trabalho, ela foi incluída nessa esfera, mas em condições míseras. Diante desses obstáculos para participar do mercado de trabalho, muitas passaram a realizar trabalhos a domicílios, eram contratadas por alguém, algo muito comum no ramo da confecção, e presente até os dias atuais9.

Intelectualmente, os homens estavam em crescente desenvolvimento, enquanto as mulheres continuavam estagnadas. Até o século XIX (19) não se tinha registro de mulheres frequentando uma universidade. As mulheres perderam até a profissão de parteira, substituída pela obstetrícia, especialidade destinada aos homens. Devido a esse tratamento dado a homens e mulheres, e a inferioridade a que elas eram submetidas, é que começaram a contestar a desigualdade de gênero no que diz respeito ao acesso ao trabalho e à educação10.

No período da revolução francesa, as mulheres, insatisfeitas com a sua situação, tentaram conquistar a mesma liberdade dada aos homens. A escritora Olympe de GOUGES, indignada com a sujeição das mulheres à sociedade machista, propôs a “Declaração dos Direitos da Mulher”, comparável à “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, pretendendo assim, acabar com os privilégios dos homens. Este foi o grande marco dessa luta feminina pela igualdade.

Olympe de GOUGES foi sentenciada à morte, guilhotinada em 1739, sob a acusação de ter deixado de lado os benefícios do seu gênero e tentar ser um homem de Estado11.

As mulheres francesas não desistiram. Elas continuaram a lutar e, dentre algumas das vitórias alcançadas estava o direito de voto, que passou a receber também o apoio dos católicos12.

É nesse período da história que o feminismo ganha forças e passa a ser visto como uma ação política organizada, cujo objetivo era reivindicar os direitos de cidadã, diante das barreiras que lhes colocavam. Esse movimento passa a ter um discurso voltado para a luta das mulheres13.

Nos Estados Unidos a história não era diferente. Do texto que falava que ‘todos os homens foram criados iguais’, o conceito de “homem” englobava apenas aqueles do sexo masculino, excluindo as mulheres, bem como os negros, índios e homens de baixa renda14.

Na Inglaterra, o feminismo foi muito marcado pela crítica que Mary WOLLSTONECRAT (escritora) fez aos pensamentos de Rousseau (filósofo). Ele acreditava que o homem pertencia ao mundo externo e a mulher ao interno, devendo sempre estar a serviço do homem. WOLLSTONECRAT contestou que existem diferenças naturais entre homens e mulheres, tanto de caráter quanto de inteligência. A suposta inferioridade da mulher dava-se pela sua educação, propondo, então, que as mulheres passassem a ter as mesmas oportunidades de formação intelectual, bem como de desenvolver-se fisicamente, que os homens15.

Após esse período da revolução, e com a chegada do século XIX, veio o capitalismo que trouxe consequências para a esfera feminina. Com a implementação de fábricas e o desenvolvimento da tecnologia, as mulheres passaram a trabalhar dentro do setor fabril, em atividades compatíveis com as que exerciam dentro de casa, em condições degradantes, e com remuneração sempre inferior à dos homens. Uma das justificativas para tal diferença é de que não havia a necessidade de as mulheres ganharem mais que os homens, pois elas tinham quem as sustentasse, no caso, eles próprios.

Agora, para finalizar, propõe-se uma reflexão sobre os dias contemporâneos… Quantos homens empregados domésticos você conhece, por exemplo? Não é ainda comum que muito mais mulheres exerçam funções voltadas aos afazeres domésticos? Seria isso um reflexo de todo o histórico mencionado acima?

Em pleno século XXI, vê-se muito da realidade experimentada pelas mulheres há mais de dois séculos.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho


1 KLAPISCH-ZUBER, Christiane. As normas do controlo. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. (Dir.) História das mulheres: a Idade Média. São Paulo: Afrontamento, 1990.

2 KLAPISCH-ZUBER, Christiane. As normas do controlo. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. (Dir.) História das mulheres: a Idade Média. São Paulo: Afrontamento, 1990.

3 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

4 OPITZ, Claudia. O quotidiano da mulher no final da Idade Média. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. (Dir.) História das mulheres: a Idade Média. São Paulo: Afrontamento, 1990. p. 353.

5 OPITZ, Claudia. O quotidiano da mulher no final da Idade Média. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. (Dir.) História das mulheres: a Idade Média. São Paulo: Afrontamento, 1990.

6 OPITZ, Claudia. O quotidiano da mulher no final da Idade Média. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. (Dir.) História das mulheres: a Idade Média. São Paulo: Afrontamento, 1990.

7 OPITZ, Claudia. O quotidiano da mulher no final da Idade Média. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. (Dir.) História das mulheres: a Idade Média. São Paulo: Afrontamento, 1990.

8 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

9 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

10 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: Mito e Realidade. São Paulo: Livraria Quatro Artes, 1969.

11SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: Mito e Realidade. São Paulo: Livraria Quatro Artes, 1969.

12 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

13 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

14 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

15 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

Adoção por casais homoafetivos

A adoção é um instituto que visa à proteção de crianças e adolescentes e ocorre por meio da formação, entre o adotante e o adotado, de um vínculo de filiação. Sobre a adoção, já se falou no artigo “O que é adoção?” (clique aqui).

O instituto é considerado um instrumento de determinação de filiação afetiva, por meio do qual se valoriza a família formada pelo afeto. Prioriza-se o interesse das crianças e dos adolescentes a serem adotados, a fim de que sejam respeitados seus direitos fundamentais. Os adotantes, na verdade, ficam em segundo plano, pois se tem como finalidade principal “dar pais aos menores desamparados”1.

A adoção realizada por somente uma pessoa é unilateral e a bilateral (ou conjunta) seria a adoção por duas pessoas, para a qual há necessidade de se comprovar que os interessados são casados entre si ou que há estabilidade da entidade familiar da qual fazem parte.

Sabe-se que o STF reconheceu a união estável homoafetiva em 2011 como entidade familiar, conforme já tratado no artigo “Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo” (clique aqui).

No que diz respeito à adoção, outrora, “gays e lésbicas se candidatavam individualmente, não sendo questionado se mantinham relacionamento homoafetivo”2. Assim, ainda que o adotante vivesse com companheiro ou companheira, a criança a ser adotada manteria vínculo jurídico com somente um deles e permaneceria desamparada em relação ao outro, mesmo que, na prática, formassem uma família.

Logo, “o não estabelecimento de uma vinculação obrigacional gerava absoluta irresponsabilidade de um dos genitores para com o filho que também era seu”3, o que poderia, muito provavelmente, ser prejudicial ao interesse das crianças ou adolescentes envolvidos.

Após o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da união estável homoafetiva e da possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, inúmeras decisões passaram a admitir a adoção de crianças ou adolescentes por casais homoafetivos. Não há motivos para impedir que casais homoafetivos realizem a adoção.

Há quem tente argumentar, ainda nos dias de hoje, que tais adoções poderiam ser prejudiciais às crianças e adolescentes, especialmente porque causariam confusão psicológica e obstáculos na identificação sexual do filho, contudo, tais argumentos não se sustentam.

Diversas pesquisas já demonstraram “não haver diferenças significativas entre o desenvolvimento de crianças criadas por famílias heterossexuais comparadas àquelas criadas por famílias homossexuais”4, até porque a orientação sexual dos pais não vincula o filho5 e “o acompanhamento de famílias homoafetivas com prole não registra a presença de qualquer dano no desenvolvimento psíquico ou social da criança”6.

É certo que, tanto homossexuais quanto heterossexuais têm sua personalidade formada de acordo com inúmeras circunstâncias sociais, culturais e étnicas. De acordo com Vera Lucia da Silva SAPKO, já se demonstrou que há “bons pais e maus pais tanto entre homossexuais como entre heterossexuais”7.

Christiano Chaves de FARIAS e Nelson ROSENVALD afirmam que sustentar a “impossibilidade da adoção por pessoas do mesmo sexo é explicitar a discriminação e o preconceito”8, mesmo porque a orientação sexual, por si só, não implica no apropriado (ou no inapropriado) exercício da autoridade parental (clique aqui), e também porque a parentalidade responsável não guarda relação com as opções íntimas de cada pessoa.

O importante é que a prole tenha um referencial de pai e um referencial de mãe, não sendo imperioso que “o homem seja a pessoa que exerça o papel de pai e a mulher, o papel de mãe”9. Os filhos precisam de alguém que desempenhe em suas histórias as funções paterna e materna, não interessando se será um homem ou uma mulher.

É nesse sentido o posicionamento de Silvana do Monte MOREIRA, para quem a “paternidade pode ser exercida igualmente por pessoas do sexo masculino ou do sexo feminino, mesmo com identidade cisgênero, pois os papéis parentais independem do sexo biológico ou da identidade de gênero masculino para seu exercício, idem com relação à maternidade”10. Desse modo, uma mulher pode exercer uma função mais “paterna”, ao passo que o homem pode ser o que apresenta, dentro daquele contexto, um lado mais “materno”.

O interesse da criança e do adolescente, embora seja um conceito subjetivo, engloba todos os cuidados essenciais a um desenvolvimento sadio e, certamente, será muito mais respeitado quando a criança estiver inserida em um contexto familiar no qual há afeto – independentemente da orientação sexual e identidade de gênero dos pais.

As crianças que aguardam o processo de adoção geralmente permanecem em lares de acolhimento institucional, aguardando por uma família que os recebam, sem qualquer previsão do tempo que precisarão permanecer naquele local. Esses locais, se comparados à colocação em família substituta homoafetiva, atendem os interesses dos infantes em uma proporção muito inferior.

Veja-se:

De acordo com o Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento, produzido pela Fundação Oswaldo Cruz com dados colhidos entre setembro de 2009 e novembro de 2010, havia nesse período cerca de trinta e sete mil crianças e adolescentes vivendo em abrigos em todo o país. Além da expressiva quantidade de crianças abrigadas, o quadro mostra-se ainda mais grave dado o desrespeito aos direitos das crianças e adolescentes nessas situações. (…) Assim, um paralelo entre a qualidade do desenvolvimento de uma criança ou adolescente dentro de um abrigo ou outras formas de acolhimento provisório, em que o tratamento sabidamente é padronizado e despersonalizado, e o benefício dessa mesma criança ou adolescente adotado no seio de uma família homossexual, faria despertar as mentes mais aguerridas para a necessidade de dar à criança e ao adolescente uma família, independentemente da orientação sexual de seus membros. (…) No abrigo ou nas outras formas de acolhimento provisório, contrariamente, não se consegue levar em consideração as singularidades de cada criança. (…)11.

Vale dizer que, nos lares de acolhimento – por melhores que sejam – o tratamento destinado a atender as necessidades dos infantes sempre acontecerá de forma coletiva, sem individualidade. Uma família, além de proporcionar elementos que não são encontrados – infelizmente – em outras formas de acolhimento, apresenta real vantagem, não havendo qualquer prejuízo em se “ter dois pais e uma mãe, ou duas mães e dois pais ou até mesmo um número maior de pais e mães. A criança ganhará, e muito, em afeto, carinho, cuidado”12.

Ana Carla Harmatiuk MATOS13 observa, ainda, que alguns estudos indicaram que “as crianças lidam bem com a homossexualidade dos genitores e que essa adoção (colocação em família substituta) é tão benéfica às crianças e adolescentes quanto a que tem feição tradicional”, não sendo razoável retirar dos filhos o direito de estarem inseridos em uma família que promova o crescimento saudável da prole.

Quanto à alteração do registro de nascimento depois da realização da adoção, lembre-se que, com o advento do Provimento nº. 02 do Conselho Nacional de Justiça, “as certidões de nascimento, casamento e óbito foram padronizadas em todo o país, ou seja, são iguais em qualquer município, e os campos pai e mãe foram substituídos por filiação e os de avós paternos e maternos por, simplesmente, avós”14. Dessa forma, evita-se constrangimento aos envolvidos.

A adoção é, em tese, irrevogável, pois o que se pretende é a estabilidade dos vínculos de filiação. Ainda que apareçam problemas de relacionamento familiar, isto também acontece em famílias consanguíneas, de modo que não teria qualquer lógica o estabelecimento de normas para fazer cessar o vínculo instituído pela adoção.

Conclui-se, portanto, que permitir que uma criança ou adolescente esteja inserido em um núcleo familiar no qual possa receber afeto e atenção deve ser o pensamento norteador do ordenamento jurídico brasileiro, independentemente da orientação sexual dos integrantes daquela família.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho


1 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 14ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014.

2 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª Ed. São Paulo: RT, 2013.

3 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª Ed. São Paulo: RT, 2013.

4 CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade sócioafetiva: efeitos jurídicos. São Paulo: Atlas, 2014.

5 “Acreditamos que não é a convivência com homossexuais que mudará a orientação sexual da pessoa. Entretanto, mesmo que houvesse alguma influência, em termos de orientação sexual do menor, qual seria o problema? Não há demérito em relação à escolha da orientação sexual, muito pelo contrário. Em uma sociedade pluralista, que tutela a minoria, que abarca a totalidade dos projetos de vida individuais, não pode haver este tipo de discriminação. Além disso, em termos de tutela do menor, o que está em jogo não é a orientação sexual do genitor, mas a potencialidade do pleno exercício da autoridade parental.” TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das Famílias entre a Norma e a Realidade. São Paulo: Atlas, 2010. 

6 DIAS, Maria Berenice. Rumo a um novo Direito. In: Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Coordenadora: Maria Berenice DIAS. Editora dos Tribunais. 3ª Edição. São Paulo, 2017.

7 SAPKO, Vera Lucia da Silva. Do direito à paternidade e maternidade dos homossexuais: sua viabilização pela adoção e reprodução assistida. Curitiba: Juruá, 2005.

8 FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 6ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2014.

9 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das Famílias entre a Norma e a Realidade. São Paulo: Atlas, 2010.

10 MOREIRA, Silvana do Monte. Parentalidade em abordagem singular. In: Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Coordenadora: Maria Berenice DIAS. Editora dos Tribunais. 3ª Edição. São Paulo, 2017.

11 MATOS, Ana Carla Hamatiuk. A adoção conjunta de parceiros do mesmo sexo e o direito fundamental à família substituta. In: Manual do Direito Homoafetivo. Coordenadores: FERRAZ, Carolina Valença. LEITE, George Salomão. LEITE, Glauber Salomão, LEITE. Glauco Salomão. Editora Saraiva. São Paulo, 2013.

12 MOREIRA, Silvana do Monte. Parentalidade em abordagem singular. In: Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Coordenadora: Maria Berenice DIAS. Editora dos Tribunais. 3ª Edição. São Paulo, 2017.

13 MATOS, Ana Carla Hamatiuk. A adoção conjunta de parceiros do mesmo sexo e o direito fundamental à família substituta. In: Manual do Direito Homoafetivo. Coordenadores: FERRAZ, Carolina Valença. LEITE, George Salomão. LEITE, Glauber Salomão, LEITE. Glauco Salomão. Editora Saraiva. São Paulo, 2013.

14 CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade sócioafetiva: efeitos jurídicos. São Paulo: Atlas, 2014.

Breve histórico da família no Brasil

“Cena de família de Adolfo Augusto Pinto” – obra de José Ferraz de Almeida Júnior

Embora em outros artigos já tenha sido mencionado que a família passou por diversas modificações ao longo dos anos, o objetivo do presente texto é realizar uma breve linha cronológica para que seja possível entender um pouco mais sobre como tais mudanças aconteceram. Esperamos que achem interessante!

A família no Brasil regido pelo Código Civil de 1916 tinha feições herdadas da sociedade romana. No Direito Romano, um dos principais atributos da entidade familiar era a autoridade do chefe de família, o qual possuía a função de mantenedor da casa em todos os sentidos, fazendo com que os outros membros ficassem subordinados a ele.

O pai detinha o poder de decisão dentro da família e não podia ser contestado pelos demais membros da entidade familiar, tampouco pelo Estado. Assim, os dependentes praticamente não tinham seus desejos próprios atendidos.

Outra característica importante era relacionada ao patrimônio, o qual era colocado como prioridade, tendo em vista que os interesses econômicos influenciavam as uniões matrimoniais, vistas como uma forma de se garantir a futura transmissão de bens aos herdeiros.

O Código Civil de 1916, no tocante às disposições familiares, era organizado com base em um modelo no qual o matrimônio era, também, a instituição mais importante, sendo considerado como a única forma legítima de se constituir uma família. É certo que outras estruturações familiares também existiam, contudo, não recebiam a tutela jurídica do Estado.

Ressalte-se que, em tal momento, ainda não era possível o divórcio ou separação, sendo a única maneira de desfazimento do matrimônio a sua anulação, ou o desquite1, o qual era previsto somente para casos específicos.

Segundo Ana Carolina Brochado TEIXEIRA, o motivo dessa forte influência do Direito Romano na legislação brasileira deve-se ao fato de que as leis portuguesas foram as primeiras a vigorar no Brasil, mesmo após a independência do país, e elas tiveram origem basicamente romana: “As ordenações Filipinas previam a perpetuidade do pátrio poder, até que o filho, legítimo ou legitimado, se tornasse independente do pai, não importando em qual idade tal fato ocorresse”2.

Para Paulo LÔBO, a mulher não ganhou liberdade e nem igualdade com a codificação no Direito de Família em 1916, e o filho resultante da união de um casal era protegido apenas com relação aos seus interesses patrimoniais, não pessoais3.

Após a Revolução Industrial e o ingresso da mulher no mercado de trabalho, entre outros fatores, exigiu-se uma adaptação da legislação à nova realidade social.

Assim, em dezembro de 1977, foi aprovada a Emenda Constitucional que determinava a possibilidade de se colocar fim à sociedade conjugal no Brasil e, também, ao vínculo, o que não era possível anteriormente. A Lei 6.515/1977, do divórcio, derrogou alguns dispositivos do Código Civil de 1916 e deu início às transformações legislativas, como resultado das metamorfoses sociais no país.

Mesmo depois da edição da lei do divórcio, as transformações na sociedade continuaram a ocorrer, de forma que a Constituição Federal (CF) da época também não se adaptava mais às situações presentes na realidade brasileira, e nem era compatível com as outras leis vigentes no país. No âmbito do Direito Familiar, portanto, a CF de 1988 surgiu com uma “nova e mais extensa concepção social e jurídica de família”4.

A Carta Magna (outra forma de se referir à Constituição Federal) de 1988 reconheceu as diversas entidades familiares e, por consequência, abriu espaço para a função contemporânea da família, com um novo paradigma, deixando para trás os interesses meramente patrimoniais de outrora.

Com a CF de 1988, a tutela às instituições familiares presentes na sociedade passou a não resultar, necessariamente, do matrimônio. Por exemplo, o artigo 226 reconhece a união estável, a qual deriva de um relacionamento informal, e, ainda, há a possibilidade de se constituir uma família monoparental, ou seja, “grupos informais chefiados por um homem ou uma mulher sem cônjuge ou companheiro”5. (Você sabia que existem vários “tipos” de família? Clique aqui).

Vale ressaltar que a CF não determina um tipo específico de família a ser protegido. Entende-se, dessa forma, que, mesmo quando não houver previsão legal nesse sentido, podem-se atribuir efeitos jurídicos a quaisquer entidades familiares, já que a redação do artigo permite uma interpretação extensiva do conceito de família.

Entende-se que essas alterações causaram uma relevante mudança no Direito Civil Brasileiro, e, a essa transformação, muitos autores chamam de “constitucionalização do Direito civil”. Isso porque se observou uma valorização da pessoa, da afetividade e, principalmente, uma despatrimonialização de forma geral do Direito, considerando que o patrimônio deixou de ser o bem mais importante a ser tutelado.

Assim, a família deixou de ser somente a biológica e passou a ser aquela constituída pelo afeto, construída no dia a dia.

Ao Estado, cabe, portanto, garantir as condições fundamentais para o desenvolvimento familiar no país. Contudo, não há mais tanta intervenção estatal nas escolhas dos indivíduos, de forma que a família começou a ficar mais democrática, e o cidadão pode optar por constituir sua família da maneira que for mais conveniente para ele, até mesmo em razão da consagração da afetividade.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho


1 O desquite era a forma do rompimento do casal na vigência do Código Civil de 1916, antes da edição da Lei 6.515/1977. Conforme Maria Berenice Dias: “Antes o casamento era indissolúvel e o desquite rompia, porém não dissolvia o casamento. Sabe-se lá o significado dessa distinção, mas o fato é que os desquitados não podiam voltar a casar. Depois de uma luta de um quarto de século, foi aprovado o divórcio, mas com inúmeras restrições. O desquite foi transformado em separação e com igual efeito: não punha fim ao casamento.” DIAS, Maria Berenice. Até que enfim… Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=513>.

2 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005.

3 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A constitucionalização do direito civil. In: FUIZA, César; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire (Coord.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

4 LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais. São Paulo: RT, 1997.

5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. In: Direito de Família e a Constituição de 1988. BITTAR, Carlos Alberto. (Coord.). São Paulo: Saraiva.

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