Breve histórico da família no Brasil

“Cena de família de Adolfo Augusto Pinto” – obra de José Ferraz de Almeida Júnior

Embora em outros artigos já tenha sido mencionado que a família passou por diversas modificações ao longo dos anos, o objetivo do presente texto é realizar uma breve linha cronológica para que seja possível entender um pouco mais sobre como tais mudanças aconteceram. Esperamos que achem interessante!

A família no Brasil regido pelo Código Civil de 1916 tinha feições herdadas da sociedade romana. No Direito Romano, um dos principais atributos da entidade familiar era a autoridade do chefe de família, o qual possuía a função de mantenedor da casa em todos os sentidos, fazendo com que os outros membros ficassem subordinados a ele.

O pai detinha o poder de decisão dentro da família e não podia ser contestado pelos demais membros da entidade familiar, tampouco pelo Estado. Assim, os dependentes praticamente não tinham seus desejos próprios atendidos.

Outra característica importante era relacionada ao patrimônio, o qual era colocado como prioridade, tendo em vista que os interesses econômicos influenciavam as uniões matrimoniais, vistas como uma forma de se garantir a futura transmissão de bens aos herdeiros.

O Código Civil de 1916, no tocante às disposições familiares, era organizado com base em um modelo no qual o matrimônio era, também, a instituição mais importante, sendo considerado como a única forma legítima de se constituir uma família. É certo que outras estruturações familiares também existiam, contudo, não recebiam a tutela jurídica do Estado.

Ressalte-se que, em tal momento, ainda não era possível o divórcio ou separação, sendo a única maneira de desfazimento do matrimônio a sua anulação, ou o desquite1, o qual era previsto somente para casos específicos.

Segundo Ana Carolina Brochado TEIXEIRA, o motivo dessa forte influência do Direito Romano na legislação brasileira deve-se ao fato de que as leis portuguesas foram as primeiras a vigorar no Brasil, mesmo após a independência do país, e elas tiveram origem basicamente romana: “As ordenações Filipinas previam a perpetuidade do pátrio poder, até que o filho, legítimo ou legitimado, se tornasse independente do pai, não importando em qual idade tal fato ocorresse”2.

Para Paulo LÔBO, a mulher não ganhou liberdade e nem igualdade com a codificação no Direito de Família em 1916, e o filho resultante da união de um casal era protegido apenas com relação aos seus interesses patrimoniais, não pessoais3.

Após a Revolução Industrial e o ingresso da mulher no mercado de trabalho, entre outros fatores, exigiu-se uma adaptação da legislação à nova realidade social.

Assim, em dezembro de 1977, foi aprovada a Emenda Constitucional que determinava a possibilidade de se colocar fim à sociedade conjugal no Brasil e, também, ao vínculo, o que não era possível anteriormente. A Lei 6.515/1977, do divórcio, derrogou alguns dispositivos do Código Civil de 1916 e deu início às transformações legislativas, como resultado das metamorfoses sociais no país.

Mesmo depois da edição da lei do divórcio, as transformações na sociedade continuaram a ocorrer, de forma que a Constituição Federal (CF) da época também não se adaptava mais às situações presentes na realidade brasileira, e nem era compatível com as outras leis vigentes no país. No âmbito do Direito Familiar, portanto, a CF de 1988 surgiu com uma “nova e mais extensa concepção social e jurídica de família”4.

A Carta Magna (outra forma de se referir à Constituição Federal) de 1988 reconheceu as diversas entidades familiares e, por consequência, abriu espaço para a função contemporânea da família, com um novo paradigma, deixando para trás os interesses meramente patrimoniais de outrora.

Com a CF de 1988, a tutela às instituições familiares presentes na sociedade passou a não resultar, necessariamente, do matrimônio. Por exemplo, o artigo 226 reconhece a união estável, a qual deriva de um relacionamento informal, e, ainda, há a possibilidade de se constituir uma família monoparental, ou seja, “grupos informais chefiados por um homem ou uma mulher sem cônjuge ou companheiro”5. (Você sabia que existem vários “tipos” de família? Clique aqui).

Vale ressaltar que a CF não determina um tipo específico de família a ser protegido. Entende-se, dessa forma, que, mesmo quando não houver previsão legal nesse sentido, podem-se atribuir efeitos jurídicos a quaisquer entidades familiares, já que a redação do artigo permite uma interpretação extensiva do conceito de família.

Entende-se que essas alterações causaram uma relevante mudança no Direito Civil Brasileiro, e, a essa transformação, muitos autores chamam de “constitucionalização do Direito civil”. Isso porque se observou uma valorização da pessoa, da afetividade e, principalmente, uma despatrimonialização de forma geral do Direito, considerando que o patrimônio deixou de ser o bem mais importante a ser tutelado.

Assim, a família deixou de ser somente a biológica e passou a ser aquela constituída pelo afeto, construída no dia a dia.

Ao Estado, cabe, portanto, garantir as condições fundamentais para o desenvolvimento familiar no país. Contudo, não há mais tanta intervenção estatal nas escolhas dos indivíduos, de forma que a família começou a ficar mais democrática, e o cidadão pode optar por constituir sua família da maneira que for mais conveniente para ele, até mesmo em razão da consagração da afetividade.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho


1 O desquite era a forma do rompimento do casal na vigência do Código Civil de 1916, antes da edição da Lei 6.515/1977. Conforme Maria Berenice Dias: “Antes o casamento era indissolúvel e o desquite rompia, porém não dissolvia o casamento. Sabe-se lá o significado dessa distinção, mas o fato é que os desquitados não podiam voltar a casar. Depois de uma luta de um quarto de século, foi aprovado o divórcio, mas com inúmeras restrições. O desquite foi transformado em separação e com igual efeito: não punha fim ao casamento.” DIAS, Maria Berenice. Até que enfim… Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=513>.

2 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005.

3 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A constitucionalização do direito civil. In: FUIZA, César; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire (Coord.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

4 LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais. São Paulo: RT, 1997.

5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. In: Direito de Família e a Constituição de 1988. BITTAR, Carlos Alberto. (Coord.). São Paulo: Saraiva.

“Menores de idade podem se casar?” – Atualizado!

Menores de idade podem se casar?”

Essa é uma pergunta que recebemos com uma frequência maior do que se poderia imaginar. Confessamos que até nos causa certo espanto o elevado número de mensagens e dúvidas que recebemos relacionadas ao casamento de pessoas menores de idade.

Na medida do possível, propomos uma reflexão para os jovens que nos escrevem, a fim de que eles pensem sobre as consequências sérias do matrimônio e decidam sobre a questão com a cautela necessária. 

Há dois anos, escrevemos sobre o tema aqui no Direito Familiar, mas, considerando as recentes atualizações legislativas, resolvemos repostar o artigo, inserindo todas as novidades que a Lei nº 13.811 de 2019 trouxe, uma vez que as alterações são bem significativas.

Vamos lá!

Afinal, menores de idade podem se casar? Embora pareça uma situação rara de se acontecer, ela é possível, desde que observados alguns critérios específicos.

Primeiramente, deve-se dizer que o casamento é um ato formal submetido a diversos requisitos previstos em lei. Esse é o motivo pelo qual existe um processo de habilitação de casamento, em que aqueles que pretendem se casar devem apresentar documentos que demonstrem a capacidade civil dos noivos e a eventual existência de impedimentos matrimoniais.

É de interesse do estado que todas as famílias constituídas pelo matrimônio sejam concebidas dentro da formalidade que a lei exige. 

Para aqueles que são maiores de 16 e menores de 18 anos¹, entende-se que podem se casar, desde que com a autorização de seus pais (artigo 1517 do Código Civil Brasileiro).

Caso os pais não autorizem o casamento do filho que possui entre 16 e 18 anos, existe o que se chama de suprimento judicial de consentimento.

O suprimento judicial do consentimento acontece quando aquele que pretende se casar possui mais de 16 e menos de 18 anos e um dos genitores (ou ambos) não autoriza o casamento. Nesses casos, o juiz, em sentença judicial, analisará a questão e autorizará o matrimônio, substituindo a autorização dos pais.

O menor de idade, para ingressar com o processo pedindo o suprimento do consentimento, deverá estar assistido pela Defensoria Pública ou por advogado, o qual deverá pleitear a sua nomeação como curador especial do adolescente, em razão do conflito de interesses entre o filho e seus representantes legais (que geralmente são os pais).

É importante dizer que o juiz deverá “proceder com extremo cuidado e cautela ao analisar o pleito de suprimento de consentimento, para não estar, por via oblíqua, afrontando o poder familiar e, tampouco, autorizando um matrimônio impensado ou decorrente de impulsos frenéticos e apaixonados, com visível proteção a um adolescente(para saber mais sobre poder familiar, clique aqui). O juiz precisará ouvir os pais do adolescente também, para entender os motivos da recusa em conceder a autorização, “somente autorizando o casamento se houver visível abuso do direito pelos responsáveis².

Em relação àqueles que pretendem casar, mas contam com menos de 16 anos, já não existe mais a possibilidade de realizar o ato, sendo esta a grande atualização legislativa trazida pela Lei 13.811 de 2019³, que alterou o artigo 1.520 do Código Civil, dando-lhe nova redação, qual seja: “Art. 1.520.  Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código“.

Ou seja, as hipóteses excepcionais até então existentes, deixaram de existir, sendo expressamente proibido o casamento de pessoas menores de 16 anos, em qualquer hipótese.

                                  – Para saber quais eram as hipóteses excepcionais existentes, clique aqui

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Arethusa Baroni
Flávia Kirilos Beckert Cabral
Laura Roncaglio de Carvalho 
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¹“Frise-se, por oportuno, que não é – e não pode ser – requisito para a capacidade matrimonial a aptidão física sexual e reprodutiva, uma vez que o casamento não traz como finalidade a procriação ou mesmo a prática de relações sexuais (que independem de casamento, por sinal), mas sim o estabelecimento de uma comunhão de afeto, de vida, como já visto antes)”. FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 6ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
²FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 6ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
³http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/66749451

Curatela: o que é isso?

No artigo “Uma criança perdeu os pais: quem ficará responsável por elas?” (clique aqui), explicamos que a tutela existe para garantir a criação e a educação de crianças ou adolescentes que tenham perdido seus genitores. Isso porque, até que atinjam os 18 anos de idade, entende-se que não teriam capacidade de reger sua própria vida civil.

Mas, para o Direito, o que significa essa “capacidade” afinal? E o que acontece se uma pessoa maior de idade não a possui? É esse o tema do artigo de hoje! Quer entender melhor? Continue lendo!

A capacidade civil é a aptidão de adquirir direitos e de assumir deveres nas relações jurídicas patrimoniais (ex.: comprar, vender, realizar contratos). Ou seja, somente aqueles que são considerados “capazes” para a lei, podem, sozinhos, realizar estes atos.

Por exemplo, uma criança é um sujeito titular de direitos como qualquer outro, mas não lhe é permitido praticar atos jurídicos, pois somente atinge a capacidade total quando completa 18 anos de idade. No caso das crianças e dos adolescentes, geralmente os genitores ou algum dos familiares é que exercerá a guarda ou a tutela (leia sobre as diferenças entre esses dois institutos clicando aqui), sendo eles, portanto, que representarão os interesses dos pequenos até que atinjam a maioridade.

A curatela, por sua vez, segue o mesmo raciocínio. No entanto, ela vale para aqueles que já completaram a maioridade civil (ou seja, já possuem 18 anos ou mais), porém, por conta de alguma doença mental – ou por alguma outra razão, listada em lei – não possuem capacidade de autodeterminação, de gerir seus próprios interesses. Embora eles sejam adultos, que, teoricamente, poderiam exercer os atos jurídicos, a doença (ou o outro motivo) lhes retira a “capacidade” para tanto. E por isso precisam de um representante. Este representante exercerá a “curatela” daquele incapaz.

Então, o que é a curatela afinal?

A curatela é um mecanismo de proteção para aqueles que, mesmo maiores de idade, não possuem capacidade de reger os atos da própria vida. Ela é o “encargo imposto a uma pessoa natural para cuidar e proteger uma pessoa maior de idade que não pode se autodeterminar patrimonialmente por conta de uma incapacidade”1.

E quem pode ser interditado?

O artigo 1767 do Código Civil Brasileiro, foi atualizado pela Lei nº 13.146 de 2015, a qual institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e prevê as seguintes hipóteses de interdição:

a) aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade: Neste ponto, o artigo é bastante genérico, com o objetivo de retirar o estigma de que pessoas com determinadas síndromes, tal como a Síndrome de Down, ou doenças como o Alzheimer, por exemplo, sejam automaticamente inseridas no rol de incapazes.

Portanto, neste contexto, cada situação será analisada considerando suas particularidades. A curatela poderá ser definida, considerando as condições ou estados psicológicos, que podem reduzir a capacidade de discernimento acerca da vida e do cotidiano de cada indivíduo.

Ainda, por causa transitória, por exemplo, podem ser considerados aqueles que encontram-se internados em UTI, mesmo que temporariamente, mas que não possuem condições de manifestar a vontade na situação em que se encontram.

A causa da incapacidade, nesses casos, dependerá de comprovação médica.

b) os ébrios habituais (alcoolistas) e viciados em tóxicos: Importante dizer aqui que, nesses casos, o discernimento é reduzido e não se trata de uso eventual de determinadas substâncias.

c) pródigos: São aqueles que dilapidam seu patrimônio de modo a prejudicar seu próprio sustento. É um desvio comportamental e se exige a presença da psicologia para sua averiguação, não bastando o mero volume de gastos para sua verificação. Nesse caso, pode ser que a interdição seja parcial, ou seja, somente para realizar negócios que envolvam o patrimônio da pessoa.

Ressalte-se que este rol é taxativo, o que significa que somente poderá ser concedida a curatela se a situação se amoldar a uma das hipóteses previstas em lei, não sendo possível requisitá-la em qualquer outra circunstância.

E como ela é instituída?

A curatela é estabelecida por meio de um processo de “interdição”. É exigido que se comprove, dentro do processo, a causa geradora da incapacidade. Como é uma medida drástica que atinge determinados direitos, a curatela não pode ser aplicada sem a devida análise do caso, e deve ter sempre por base a proteção do indivíduo interditado. Além disso, somente se justifica em razão das necessidades dele.

Na sentença, o juiz estabelecerá o grau da incapacidade, pois nem sempre ela será absoluta. Assim, a interdição incidirá somente em determinados atos e situações. O ideal é que o juiz observe o alcance do “comprometimento mental do interditando, procurando assegurar que ele mesmo, pessoalmente, possa continuar, se possível, exercendo seus interesses existenciais”2.

No mais, será nomeado um curador, que exercerá a curatela. Esse curador será, preferencialmente, o cônjuge ou companheiro do interditando, bem como um dos parentes mais próximos (ascendente, descendente ou colateral). Caberá ao juiz verificar quem possui melhores condições de exercer o encargo e quem possui uma relação de afeto e afinidade com o incapaz (ou relativamente incapaz).

O curador terá a obrigação de administrar os bens do curatelado e de prestar contas a cada dois anos (ou a critério do juiz) por meio de um relatório contábil com os comprovantes das despesas. Verificada qualquer irregularidade, ele poderá ser destituído do encargo, providenciando-se a sua substituição.

Arethusa Baroni
Flávia Kirilos Beckert Cabral
Laura Roncaglio de Carvalho
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1 FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 6ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
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