Adoção por casais homoafetivos

A adoção é um instituto que visa à proteção de crianças e adolescentes e ocorre por meio da formação, entre o adotante e o adotado, de um vínculo de filiação. Sobre a adoção, já se falou no artigo “O que é adoção?” (clique aqui).

O instituto é considerado um instrumento de determinação de filiação afetiva, por meio do qual se valoriza a família formada pelo afeto. Prioriza-se o interesse das crianças e dos adolescentes a serem adotados, a fim de que sejam respeitados seus direitos fundamentais. Os adotantes, na verdade, ficam em segundo plano, pois se tem como finalidade principal “dar pais aos menores desamparados”1.

A adoção realizada por somente uma pessoa é unilateral e a bilateral (ou conjunta) seria a adoção por duas pessoas, para a qual há necessidade de se comprovar que os interessados são casados entre si ou que há estabilidade da entidade familiar da qual fazem parte.

Sabe-se que o STF reconheceu a união estável homoafetiva em 2011 como entidade familiar, conforme já tratado no artigo “Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo” (clique aqui).

No que diz respeito à adoção, outrora, “gays e lésbicas se candidatavam individualmente, não sendo questionado se mantinham relacionamento homoafetivo”2. Assim, ainda que o adotante vivesse com companheiro ou companheira, a criança a ser adotada manteria vínculo jurídico com somente um deles e permaneceria desamparada em relação ao outro, mesmo que, na prática, formassem uma família.

Logo, “o não estabelecimento de uma vinculação obrigacional gerava absoluta irresponsabilidade de um dos genitores para com o filho que também era seu”3, o que poderia, muito provavelmente, ser prejudicial ao interesse das crianças ou adolescentes envolvidos.

Após o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da união estável homoafetiva e da possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, inúmeras decisões passaram a admitir a adoção de crianças ou adolescentes por casais homoafetivos. Não há motivos para impedir que casais homoafetivos realizem a adoção.

Há quem tente argumentar, ainda nos dias de hoje, que tais adoções poderiam ser prejudiciais às crianças e adolescentes, especialmente porque causariam confusão psicológica e obstáculos na identificação sexual do filho, contudo, tais argumentos não se sustentam.

Diversas pesquisas já demonstraram “não haver diferenças significativas entre o desenvolvimento de crianças criadas por famílias heterossexuais comparadas àquelas criadas por famílias homossexuais”4, até porque a orientação sexual dos pais não vincula o filho5 e “o acompanhamento de famílias homoafetivas com prole não registra a presença de qualquer dano no desenvolvimento psíquico ou social da criança”6.

É certo que, tanto homossexuais quanto heterossexuais têm sua personalidade formada de acordo com inúmeras circunstâncias sociais, culturais e étnicas. De acordo com Vera Lucia da Silva SAPKO, já se demonstrou que há “bons pais e maus pais tanto entre homossexuais como entre heterossexuais”7.

Christiano Chaves de FARIAS e Nelson ROSENVALD afirmam que sustentar a “impossibilidade da adoção por pessoas do mesmo sexo é explicitar a discriminação e o preconceito”8, mesmo porque a orientação sexual, por si só, não implica no apropriado (ou no inapropriado) exercício da autoridade parental (clique aqui), e também porque a parentalidade responsável não guarda relação com as opções íntimas de cada pessoa.

O importante é que a prole tenha um referencial de pai e um referencial de mãe, não sendo imperioso que “o homem seja a pessoa que exerça o papel de pai e a mulher, o papel de mãe”9. Os filhos precisam de alguém que desempenhe em suas histórias as funções paterna e materna, não interessando se será um homem ou uma mulher.

É nesse sentido o posicionamento de Silvana do Monte MOREIRA, para quem a “paternidade pode ser exercida igualmente por pessoas do sexo masculino ou do sexo feminino, mesmo com identidade cisgênero, pois os papéis parentais independem do sexo biológico ou da identidade de gênero masculino para seu exercício, idem com relação à maternidade”10. Desse modo, uma mulher pode exercer uma função mais “paterna”, ao passo que o homem pode ser o que apresenta, dentro daquele contexto, um lado mais “materno”.

O interesse da criança e do adolescente, embora seja um conceito subjetivo, engloba todos os cuidados essenciais a um desenvolvimento sadio e, certamente, será muito mais respeitado quando a criança estiver inserida em um contexto familiar no qual há afeto – independentemente da orientação sexual e identidade de gênero dos pais.

As crianças que aguardam o processo de adoção geralmente permanecem em lares de acolhimento institucional, aguardando por uma família que os recebam, sem qualquer previsão do tempo que precisarão permanecer naquele local. Esses locais, se comparados à colocação em família substituta homoafetiva, atendem os interesses dos infantes em uma proporção muito inferior.

Veja-se:

De acordo com o Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento, produzido pela Fundação Oswaldo Cruz com dados colhidos entre setembro de 2009 e novembro de 2010, havia nesse período cerca de trinta e sete mil crianças e adolescentes vivendo em abrigos em todo o país. Além da expressiva quantidade de crianças abrigadas, o quadro mostra-se ainda mais grave dado o desrespeito aos direitos das crianças e adolescentes nessas situações. (…) Assim, um paralelo entre a qualidade do desenvolvimento de uma criança ou adolescente dentro de um abrigo ou outras formas de acolhimento provisório, em que o tratamento sabidamente é padronizado e despersonalizado, e o benefício dessa mesma criança ou adolescente adotado no seio de uma família homossexual, faria despertar as mentes mais aguerridas para a necessidade de dar à criança e ao adolescente uma família, independentemente da orientação sexual de seus membros. (…) No abrigo ou nas outras formas de acolhimento provisório, contrariamente, não se consegue levar em consideração as singularidades de cada criança. (…)11.

Vale dizer que, nos lares de acolhimento – por melhores que sejam – o tratamento destinado a atender as necessidades dos infantes sempre acontecerá de forma coletiva, sem individualidade. Uma família, além de proporcionar elementos que não são encontrados – infelizmente – em outras formas de acolhimento, apresenta real vantagem, não havendo qualquer prejuízo em se “ter dois pais e uma mãe, ou duas mães e dois pais ou até mesmo um número maior de pais e mães. A criança ganhará, e muito, em afeto, carinho, cuidado”12.

Ana Carla Harmatiuk MATOS13 observa, ainda, que alguns estudos indicaram que “as crianças lidam bem com a homossexualidade dos genitores e que essa adoção (colocação em família substituta) é tão benéfica às crianças e adolescentes quanto a que tem feição tradicional”, não sendo razoável retirar dos filhos o direito de estarem inseridos em uma família que promova o crescimento saudável da prole.

Quanto à alteração do registro de nascimento depois da realização da adoção, lembre-se que, com o advento do Provimento nº. 02 do Conselho Nacional de Justiça, “as certidões de nascimento, casamento e óbito foram padronizadas em todo o país, ou seja, são iguais em qualquer município, e os campos pai e mãe foram substituídos por filiação e os de avós paternos e maternos por, simplesmente, avós”14. Dessa forma, evita-se constrangimento aos envolvidos.

A adoção é, em tese, irrevogável, pois o que se pretende é a estabilidade dos vínculos de filiação. Ainda que apareçam problemas de relacionamento familiar, isto também acontece em famílias consanguíneas, de modo que não teria qualquer lógica o estabelecimento de normas para fazer cessar o vínculo instituído pela adoção.

Conclui-se, portanto, que permitir que uma criança ou adolescente esteja inserido em um núcleo familiar no qual possa receber afeto e atenção deve ser o pensamento norteador do ordenamento jurídico brasileiro, independentemente da orientação sexual dos integrantes daquela família.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho


1 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 14ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014.

2 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª Ed. São Paulo: RT, 2013.

3 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª Ed. São Paulo: RT, 2013.

4 CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade sócioafetiva: efeitos jurídicos. São Paulo: Atlas, 2014.

5 “Acreditamos que não é a convivência com homossexuais que mudará a orientação sexual da pessoa. Entretanto, mesmo que houvesse alguma influência, em termos de orientação sexual do menor, qual seria o problema? Não há demérito em relação à escolha da orientação sexual, muito pelo contrário. Em uma sociedade pluralista, que tutela a minoria, que abarca a totalidade dos projetos de vida individuais, não pode haver este tipo de discriminação. Além disso, em termos de tutela do menor, o que está em jogo não é a orientação sexual do genitor, mas a potencialidade do pleno exercício da autoridade parental.” TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das Famílias entre a Norma e a Realidade. São Paulo: Atlas, 2010. 

6 DIAS, Maria Berenice. Rumo a um novo Direito. In: Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Coordenadora: Maria Berenice DIAS. Editora dos Tribunais. 3ª Edição. São Paulo, 2017.

7 SAPKO, Vera Lucia da Silva. Do direito à paternidade e maternidade dos homossexuais: sua viabilização pela adoção e reprodução assistida. Curitiba: Juruá, 2005.

8 FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 6ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2014.

9 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das Famílias entre a Norma e a Realidade. São Paulo: Atlas, 2010.

10 MOREIRA, Silvana do Monte. Parentalidade em abordagem singular. In: Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Coordenadora: Maria Berenice DIAS. Editora dos Tribunais. 3ª Edição. São Paulo, 2017.

11 MATOS, Ana Carla Hamatiuk. A adoção conjunta de parceiros do mesmo sexo e o direito fundamental à família substituta. In: Manual do Direito Homoafetivo. Coordenadores: FERRAZ, Carolina Valença. LEITE, George Salomão. LEITE, Glauber Salomão, LEITE. Glauco Salomão. Editora Saraiva. São Paulo, 2013.

12 MOREIRA, Silvana do Monte. Parentalidade em abordagem singular. In: Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Coordenadora: Maria Berenice DIAS. Editora dos Tribunais. 3ª Edição. São Paulo, 2017.

13 MATOS, Ana Carla Hamatiuk. A adoção conjunta de parceiros do mesmo sexo e o direito fundamental à família substituta. In: Manual do Direito Homoafetivo. Coordenadores: FERRAZ, Carolina Valença. LEITE, George Salomão. LEITE, Glauber Salomão, LEITE. Glauco Salomão. Editora Saraiva. São Paulo, 2013.

14 CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade sócioafetiva: efeitos jurídicos. São Paulo: Atlas, 2014.

União estável e casamento entre pessoas do mesmo sexo

o sexo é tão inerente ao ser humano como respirar, amar, ou sofrer. 

Pena que alguns teimem em transformá-lo em tabu.” 

(RODRIGUES, Humberto).

 

A possibilidade de uniões estáveis e de casamento entre pessoas do mesmo sexo é um assunto que já gerou muita polêmica. Aqui, no Direito Familiar, nunca foi escrito um artigo especificamente sobre isso, por entendermos que o casamento – e a união estável – de homossexuais, em nada difere das demais entidades familiares.

No entanto, para aqueles que se interessam pela matéria, achamos que seria pertinente tecer uma explicação de como essas uniões passaram a ser reconhecidas efetivamente pelo ordenamento jurídico brasileiro. Quer entender melhor como isso aconteceu? Vamos lá!

Em diversos artigos, já mencionamos que a família passou por transformações ao longo dos anos, tendo em vista que em épocas anteriores a entidade familiar formada pelo matrimônio era a única reconhecida pelo Direito e que, com o passar do tempo, a família veio a ser identificada por outro aspecto principal: o afeto.

Assim, considerando que as mudanças da sociedade exigiram uma adaptação da legislação, as alterações advindas da Constituição Federal de 1988 reconheceram as diversas formas de família, sejam elas formadas pelo casamento ou não.

Segundo Giselda HIRONAKA1, a família atual é “mais sincera, digamos assim, no sentido de que as hipocrisias e as simulações de antes já não encontram mais lugar em cena”, ou seja, aquelas famílias – não formadas pelo casamento – sempre existiram, apenas não recebiam proteção jurídica, o que passou a acontecer com essa “humanização” do Direito e valorização da dignidade humana.

Embora apresentem diversidade no que diz respeito ao gênero dos envolvidos, as uniões homossexuais são constituídas pelas mesmas características das heterossexuais, tendo como elemento principal o afeto. Entende-se, pois, que não podem algumas entidades familiares serem protegidas e outras não.

Antes do reconhecimento pela Constituição Federal de todas as entidades familiares, aqueles que mantinham um relacionamento que não fosse nos moldes da lei, quando da separação, precisariam dissolver a união na Vara Cível, na qual a família era tratada como uma “sociedade de fato”. Um dos parceiros poderia até receber indenização ou parte do patrimônio adquirido, por exemplo, mas isso seria em razão da “sociedade” que fizeram e não da “família” e da comunhão de vida instituída.

Os primeiros avanços foram notados quando a jurisprudência (“O que é jurisprudência?” clique aqui) passou a admitir que os casos envolvendo a separação de casais homossexuais fossem analisados nas Varas de Família, sob o viés das normas pertinentes à união estável (ano 2001). Tal circunstância veio a ser reforçada, posteriormente, pelo enunciado 524 das Jornadas de Direito Civil2.

Em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável homossexual como entidade familiar e atribuiu direitos aos casais formados por pessoas do mesmo sexo. Em seguida, o “Tribunal, ainda por votação unânime, julgou procedente as ações, com eficácia erga omnes e efeito vinculante”3, o que significa dizer que esse seria um posicionamento a ser seguido pelos demais juristas do país4.

Assim, entende-se que o artigo 226, §3o, da Constituição Federal, segundo o qual “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher”, embora não tenha sido efetivamente alterado, deve ser lido de outra maneira. Portanto, onde se lê “o homem e a mulher”, a interpretação que passou a ser dada é de que se leia “pessoas”.

Em junho de 2011, foi convertida a primeira união estável homossexual em casamento, via judicial (é possível a conversão de uma união em casamento). Depois desse pedido, outros também começaram a ser concedidos judicialmente.

Conrado Paulino da ROSA5 explica que “o Brasil passou a figurar no rol de países que possibilitam e aceitam juridicamente o casamento gay, ainda que na forma de conversão, em uma patente demonstração de acatamento das diferenças, sem hipocrisias, possibilitando, acima de tudo, a felicidade de seus cidadãos”.

Se a união estável homossexual passou a poder ser convertida em casamento, por qual motivo não se reconhecer o matrimônio homossexual diretamente? Isso não faria sentido. Assim, passou-se a reconhecer, também, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ainda que com a eventual necessidade de intervenção judicial para tanto – em caso de negativa por parte dos cartórios em relação à celebração.

Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução nº. 175/2013, o que caracterizou mais um avanço, na medida em que determina que as autoridades (cartórios) não podem rejeitar a celebração do casamento homossexual e nem a conversão da união estável em casamento. Caso exista tal recusa, isso deve ser comunicado ao juiz corregedor para a adoção das medidas adequadas.

É certo que, da mesma forma que acontecia outrora em relação a outros tipos de família, as uniões homossexuais não deixarão de existir por não estarem regulamentadas, do mesmo modo que elas não aumentarão somente em decorrência do reconhecimento legal.

Ao não se reconhecer uma união homossexual, fere-se o princípio da dignidade. Com o não reconhecimento, a Justiça estaria a colaborar, de fato, para a criação de injustiças, já que estaria “fechando os olhos” para sujeitos que merecem igualdade de proteção.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho

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1HIRONAKA, Giselda. A incessante travessia dos tempos e a renovação dos paradigmas. In: SOUZA, Ivone Maria Candido Coelho de (coord.). Direito de Família, diversidade e multidiciplinariedade. IBDFAM, Porto Alegre, 2007.
2524) Art. 1.723. As demandas envolvendo união estável entre pessoas do mesmo sexo constituem matéria de Direito de Família.
3ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família Contemporâneo. Editora Juspodvm. Salvador, 2016.
4“Enquanto isso, os Poderes Judiciário e Executivo, atendendo a clamor social de justiça e equilíbrio, apesar das resistências e preconceitos, começam a dar efetividade às normas e aos princípios constitucionais e a dispensar tratamento especial ao tema, objetivando não mais excluí-lo, pois a orientação de cada ser humano especialmente no campo sexual, deve ser respeitada.” ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família Contemporâneo. Editora Juspodvm. Salvador, 2016.
5ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família Contemporâneo. Editora Juspodvm. Salvador, 2016.
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