O surgimento de mecanismos de proteção à mulher no Brasil

Em textos anteriores, o Direito Familiar tratou sobre os direitos das mulheres e busca pela diminuição da violência (de todas as formas) contra o gênero feminino. Ainda que essa não seja uma matéria relacionada diretamente ao Direito de Família, achamos válido trazer o assunto, até para gerar reflexões.

No artigo “Uma análise da história da mulher na sociedade” (clique aqui) tratou-se sobre essa busca pelos direitos e sobre alguns eventos importantes que trouxeram visibilidade à temática no mundo. Agora, como a questão foi e é vista no Brasil?

Aqui, um grande passo foi dado a respeito disso em 1986, quando foi criada uma delegacia especializada em atender os casos de maus-tratos sofridos pelas mulheres1.

Essas delegacias tinham a intenção de proporcionar às mulheres vítimas da violência doméstica um tratamento diferenciado, mais respeitoso e digno, diferente do que recebiam nas delegacias comuns.

Elas encontrariam não só um tratamento melhor, mas um atendimento especializado que reconhecia como crime as violências sofridas por elas. A criação dessas delegacias trouxe à tona a ideia de que as atitudes de violência contra as mulheres, ocorridas dentro do espaço privado, que até então eram “invisíveis”, e sem importância social, passassem a ser criminalizadas, atingindo, sobretudo, a esfera pública2.

Por ter ganhado espaço na esfera pública, a violência doméstica passou a ser objeto de pesquisas, o que multiplicou os debates sobre o tema. Avaliando o surgimento das delegacias especializadas, observou-se certa frustração, pois os resultados obtidos não foram satisfatórios, ao passo que um número muito reduzido de atendimentos feitos às mulheres vítimas de violência se transformava em processo, os quais eram encaminhados à justiça. Isso se dava pelo fato de que por muitas vezes a vítima retirava a queixa, ou por falhas de instrução processual as queixas eram arquivadas, antes ou depois de encaminhadas ao Ministério Público, e também porque, por muitas vezes, o ato denunciado sequer se enquadrava nas tipificações policiais.

Essas delegacias especializadas situavam-se entre o mundo das ocorrências e a esfera da legalidade, tendo em vista que, por receberem uma demanda bastante diversificada, que por muitas vezes não se enquadrava dentro das classificações da justiça, tiveram que ampliar, na prática, as noções de legalidade e de direito3.

Apesar desse avanço, observa-se que não basta haver uma melhora na legislação, faz-se necessário que tenham pessoas aptas a receberem esse tipo de vítima. Para melhorar nesse aspecto, por muitas vezes as delegacias fizeram e fazem um trabalho conjunto com ONGs especializadas nos casos de violência doméstica, tratando não só dos aspectos jurídicos, mas também o social e o psicológico4.

Desde a criação dessas delegacias das mulheres, o registro de agressões cresceu, o que não significa que o índice de violência aumentou, é apenas o reflexo na esfera pública, na medida em que foi dada maior atenção ao problema. As mulheres passaram a confiar nas delegacias, a acreditar que receberão o apoio necessário, deixando de lado o medo e a vergonha de denunciarem, resgatando sua segurança, integridade psicológica e física, bem como a vida5.

Além disso, no Brasil, temos a Lei nº 11.340/2006 (Maria da Penha). Ela foi desenvolvida em resposta à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, pois ela atribuiu ao país a responsabilidade pelos altos índices de violência contra a mulher.

No caso específico da Maria da Penha (que deu nome à Lei), ocorrido em 1983, o ex-marido alvejou a mulher enquanto ela dormia, deixando-a com sequelas graves de paraplegia. Apesar disso, ele somente foi condenado depois de 19 anos.

Diante da morosidade do Estado, ela recorreu aos órgãos internacionais, como a supramencionada Comissão, e formulou uma denúncia.

Palomma Massete SILVA6 explica como o caso teve repercussão internacional, fazendo com que o Brasil sofresse uma pressão de diversos órgãos para observar mais de perto as situações de violência doméstica, tomando as providências no sentido de garantir mais proteção às vítimas:

A demora na resolução do caso teve uma grande repercussão, resultando na intervenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA solicitando ao governo brasileiro um parecer sobre o fato. Contudo, o governo não apresentou o relatório, sendo condenado, em 2001, a pagar indenização de 20 mil dólares a Maria da Penha em razão da negligência e omissão ao caso. Ademais, foi solicitado que o país adotasse medidas de proteção e coibição para mulheres em situação de violência doméstica. No intuito de cumprir as exigências da OEA, o Brasil homologou o decreto 4377/02 em que torna signatário do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.

Depois disso, e da pressão internacional do movimento feminista, a Lei Maria da Penha entrou em vigor em setembro de 2006, ou seja, o “Brasil precisou ser responsabilizado perante uma Corte Internacional por sua omissão para criar uma lei que atendesse às mulheres”7.

De qualquer forma, não há como negar a sua importância, tendo em vista que, anteriormente à Lei 11.340/2006, as situações de violência contra a mulher eram julgadas segundo a Lei 9099/1995 (Juizados Especiais) e a maioria dos casos era considerada crime de menor potencial ofensivo.

A Lei Maria da Penha não criou nenhum tipo penal novo no âmbito da legislação criminal, mas trouxe mecanismos para descaracterizar a infração como de menor potencial ofensivo e também ampliou o conceito de violência, considerando agressões físicas, psicológicas, sexuais e patrimoniais. Ainda, contemplou diversos dispositivos de proteção, assistência e amparo (não somente imputações penais).

Por mais que a luta seja intensa e venha ocorrendo há anos, ainda não se vê efetivamente um resultado, pois, por mais que tenha sido despertada a atenção para o problema, e tenham buscado soluções, muitas vezes vemos que a lei não é efetivamente cumprida.

A importância de se ter uma lei diferenciada para a proteção da mulher, é de que ela sirva como um instrumento de modificação da sociedade, como uma alavanca que vise promover a situação feminina, pois há o entendimento de que a lógica hierárquica de poder dentro da nossa sociedade não privilegia as mulheres8.

A própria Constituição Federal visa igualar a mulher ao homem, bem como erradicar a violência doméstica, conforme se vê em seus artigos 5º, inciso I, e 226, parágrafo 8º9.

A necessidade da existência de uma lei que oprima a violência doméstica contra a mulher, tratada tanto na Constituição Federal, como em diversos tratados internacionais, inclusive dos quais o Brasil faz parte, é reforçada por dados que confirmam sua ocorrência no habitual da mulher brasileira.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho


1ROCHA, Martha Mesquita. Lidando com crimes contra mulheres: Brasil. In: MORRISON, Andrew R.; BIEHL, María Loreto. (Eds.). A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

2SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

3SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

4LARRAÍN, Soledad. Reprimindo a violência doméstica: duas décadas de ação. In: MORRISON, Andrew R.; BIEHL, María Loreto. (Eds.). A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

5ROCHA, Martha Mesquita. Lidando com crimes contra mulheres: Brasil. In: MORRISON, Andrew R.; BIEHL, María Loreto. (Eds.). A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

6 SILVA, Palloma Massette. O discurso de gênero e os direitos da personalidade: análise da aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres transexuais não operadas e sem retificação de dados do registro civil. VIII Jornada Internacional de Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão, 2017. Disponível em: http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2017/pdfs/eixo6/odiscursodegeneroeosdireitosdapersonalidadeanalisedaaplicacaodaleimariadapenhaparamulherestransexuaisnaooperadassemretificacaodedadosnoregistrocivil.pdf. Acesso em 31 mar. 19.

7 MARQUES, Dieision Felipe Zanfra. Tutela jurídica da Lei Maria da Penha aos Transexuais? Disponível em: https://publicacoeseventos.unijui.edu.br/index.php/conabipodihu/article/view/9336. Acesso em 31 mar. 19.

8CAMPOS, Amini Haddad; CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos humanos das Mulheres. Curitiba: Juruá, 2007.

9“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:  I –  homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;” (…)Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, artigos 5º e 226, 1988. Site Presidência da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_13.07.2010/index.shtm>.

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