A busca dos direitos das mulheres no mundo

A violência contra a mulher já foi abordada no Direito Familiar em outros artigos (clique aqui para ler) e, inclusive, tratou-se sobre os motivos que levaram à criação de uma lei específica para a proteção de mulheres no Brasil (clique aqui). Sempre que tais assuntos são abordados, surgem algumas discussões polêmicas.

Por isso, no presente artigo – apesar de não ser um tema relacionado diretamente ao Direito de Família – resolvemos abordar a questão de uma forma mais global, trazendo como exemplos alguns dos movimentos mais importantes e históricos de outros países, que buscavam  o reconhecimento de direitos às mulheres, diminuindo todas as formas de violência em relação a elas. Se você gosta de história, continue lendo!

Aproveitando, para que se tenha uma noção melhor sobre tudo que falaremos adiante, recomendamos a leitura de dois artigos nossos: “Histórico da posição social feminina no Brasil” (clique aqui) e “Uma análise da história da mulher na sociedade” (clique aqui).

Depois de analisar fatos e períodos históricos relacionados ao papel da mulher na sociedade, fica nítido que a violência contra as mulheres sempre foi presente, devido a posição de inferioridade que ocupavam e ocupam em relação aos homens, desde os períodos mais remotos e, infelizmente, até os dias atuais – ainda que haja muita luta para se combater desigualdades.

Lembrando um pouco do contexto histórico, tem-se que um dos momentos mais relevantes de insatisfação das mulheres quanto à sua posição social ocorreu na Revolução Francesa. Nesse período, a mobilização feminina passou a ser discutida e, assim, tornou públicas as vivências diárias de desvantagem, de violência e injustiça nas relações entre homens e mulheres.

Em 1791, surgiu na França a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, redigida por Olympe de GOUGES (ativista política), e esse é um dos mais importantes documentos que se contrapõe à restrição masculina do conceito de igualdade1. O seu principal objetivo era pôr fim à predominância dos homens, tanto no espaço público quanto no privado, e fazer com que as mulheres passassem a ter autonomia2.

No período anterior à Revolução Francesa, as mulheres se mantiveram sempre ao lado do homem, mas não viram as conquistas políticas desdobrarem-se a elas. A partir desse momento, porém, as mulheres passaram a reivindicar seus direitos de cidadania, e o movimento feminista adquiriu um discurso próprio, afirmando a especificidade da luta da mulher3.

O feminismo pode ser definido, segundo Jane MANSBRIDGE (cientista política americana), como o compromisso de pôr fim à dominação masculina. Não é apenas um discurso, é a busca pela definição ou redefinição da identidade das mulheres, diferenciando-as dos homens, bem como assegurando as especificidades delas4.

O ponto crucial do feminismo é a defesa dos direitos da mulher, que pode ser vista como uma extensão do movimento pelos direitos humanos. As mulheres querem ser vistas como seres humanos, e não serem rotuladas como uma coisa, um objeto5.

Somente nos anos de 1930 e 1940 é que, efetiva e formalmente, algumas das reivindicações das mulheres passaram a ser atendidas. Elas começaram a ser reconhecidas como cidadãs, podiam ingressar nas escolas, trabalhar, e ainda adquiriram o direito de votar e serem votadas.

Nesse período, Simone BEAUVOIR (escritora, filósofa, feminista, ativista política) escreveu o livro “Segundo sexo” que trata, em certa medida, da desigualdade entre homens e mulheres. Ela aprofundou seus estudos no que diz respeito ao desenvolvimento psicológico da mulher, bem como as subordinações que o gênero feminino sofria/sofre nesse período de socialização.

Para BEAUVOIR, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, ao passo que os termos “feminino” e “masculino” são criações culturais, tendo em vista o entendimento de que cada gênero deve cumprir funções peculiares e diferentes6.

A partir do movimento feminista e da sua luta pelos direitos das mulheres, que não mais queriam ser vistas como objetos, mas sim como sujeitos, e tornarem-se cidadãs, é que a violência praticada contra elas passa a ser exteriorizada para o espaço público7.

Pode-se dizer que, outrora, a violência doméstica era invisível, pois era pouco divulgada, não era objeto de estudo de políticas públicas, não tinha um nome, não gerava polêmica, estava somente limitada aos debates feministas8.

Os grupos feministas fizeram com que muitos governos e organizações internacionais prestassem mais atenção ao problema da violência contra as mulheres,  tornando esse assunto uma das pautas nas agendas desses órgãos9.

Em 1975, na primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres, na cidade do México, foi discutida a questão do conflito dentro da família. No ano de 1979, na Assembleia Geral da ONU, foi aprovada a convenção que versava sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres.

Em 1980, na segunda Conferência Mundial sobre as Mulheres, foram abordados de maneira objetiva os problemas de mulheres agredidas e também a violência doméstica, passando então a ser adotada uma resolução a respeito do assunto.

Na quinta Conferência Regional da Eclac, em 1991, a violência doméstica passou a ser vista como um obstáculo para o desenvolvimento das mulheres.

Em 1993, na Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em Viena, a violência contra a mulher passou a ser efetivamente reconhecida como violação aos direitos humanos. Nesse mesmo ano, na Declaração da ONU sobre a eliminação da violência contra as mulheres, deu-se real importância ao assunto, considerando de extrema urgência a necessidade de aplicar a todas as mulheres os direitos de todos os seres humanos, tais como: liberdade, igualdade, dignidade e integridade.

No ano seguinte (1992), na Convenção Interamericana sobre prevenção, punição e erradicação da violência contra as mulheres, foi considerado que o reconhecimento e respeito aos direitos das mulheres são de suma importância para o seu desenvolvimento como pessoa, além se ser o caminho para uma sociedade mais justa e unida10.

A importância que passou a ser dada ao assunto fez surgir em diversos países muitos métodos de combate à violência contra a mulher, de modo que se pode concluir que as revoluções não foram em vão.

A luta contra a violência não pode ser deixada de lado, pois faz parte do desenvolvimento da sociedade e a violência doméstica gera consequências tanto no aspecto social, quanto econômico e político11 dos países.

A intenção primordial do movimento feminista não é melhorar a relação entre os gêneros feminino e o masculino, mas sim estabelecer a igualdade entre eles. Por terem sido – e ainda serem – vítimas dos homens, as mulheres necessitam de uma lei que as proteja especialmente.

A busca pela igualdade deve ser feita na medida das diferenças entre os gêneros, ou seja, devem ser levadas em consideração algumas diferenças para que se alcance a efetiva igualdade12. Em outras palavras, as diferenças existentes entre homens e mulheres não servem de justificativas para a manutenção da desigualdade.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho


1 GERHARD, Ute. Sobre a liberdade, igualdade e dignidade das mulheres: o direito “diferente” de Olympe de Gouges. In: BONACCHI, Gabiella; GROPPI, Angela. (Ed.). O dilema da cidadania: direito e deveres das mulheres. São Paulo: Afiliada, 1994.

2 GERHARD, Ute. Sobre a liberdade, igualdade e dignidade das mulheres: o direito “diferente” de Olympe de Gouges. In: BONACCHI, Gabiella; GROPPI, Angela. (Ed.). O dilema da cidadania: direito e deveres das mulheres. São Paulo: Afiliada, 1994.

3 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

4 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

5 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

6 ALVES, Branca Moreira; PINTANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

7 SANTOS, Maria de Fátima de Souza. Representações sociais e violência doméstica. In: SOUZA, Lídio De. TRINDADE, Zeidi Araujo. (Orgs.) Violência e exclusão: convivendo com paradoxos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

8 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

9 LARRAÍN, Soledad. Reprimindo a violência doméstica: duas décadas de ação. In: MORRISON, Andrew R.; BIEHL, María Loreto. (Eds.). A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

10 LARRAÍN, Soledad. Reprimindo a violência doméstica: duas décadas de ação. In: MORRISON, Andrew R.; BIEHL, María Loreto. (Eds.). A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

11 LARRAÍN, Soledad. Reprimindo a violência doméstica: duas décadas de ação. In: MORRISON, Andrew R.; BIEHL, María Loreto. (Eds.). A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

12 BADINTER, Elisabeth. Rumo equivocado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Pornografia de vingança: o que é isso?

Você já ouviu falar em “pornografia de vingança”? Talvez o nome não seja tão comum, mas certamente você já viu (ainda que em noticiários) alguma situação envolvendo esse assunto. A pornografia de vingança acontece quando, depois do término de um relacionamento, um dos envolvidos divulga imagens íntimas do outro, expondo aquela pessoa por conta do sentimento de vingança.

Essa não é uma questão relacionada diretamente ao Direito de Família, pois envolve até aspectos criminais e cíveis (indenização). No entanto, como geralmente ela acontece em decorrência de relações íntimas e como é um assunto bem importante, convidamos a acadêmica Katrin Abdalla Breginski para escrever um pouco sobre o tema aqui no Direito Familiar!

Pornografia de vingança: o que é isso?

Por Katrin Abdalla Breginski

Com a ampliação da utilização dos meios eletrônicos, passou a existir uma facilidade de comunicação que tornou a internet um dos principais cenários de propagação de conteúdos e informações.

O ambiente virtual passou a ser utilizado nas relações, com gravações de vídeos em momentos íntimos, envio de mensagens com teor sexual e compartilhamento de imagens em estado de nudez.

Em que pese exista preconceito, o compartilhamento de mídias entre casais possibilitou uma nova forma de comunicação que independe da distância física a que os envolvidos possam estar submetidos. pesquisas que indicam que o compartilhamento de conteúdo íntimo ocorre em todas as faixas etárias sexualmente ativas e grupos sociais.

Contudo, essas práticas podem se demonstrar problemáticas, principalmente depois do fim dos relacionamentos. A expansão da internet abriu caminho para mais um ambiente de agressões.

Foi nesse contexto que surgiu a “Pornografia de Vingança”. Embora ela possa ser praticada contra qualquer um, há indicativos de que a predominância é contra mulheres. Assim, pode ser vista por alguns como uma nova modalidade de violência de gênero.

Ela ocorre quando um dos parceiros exerce a violência simbólica de expor a intimidade do outro na internet, tendo por objetivo a vingança e causando grande dano emocional, com estragos decorrentes da propagação daquele conteúdo.

O conteúdo em si pode ter sido obtido com o consentimento da vítima ou sem o consentimento dela. Em grande parte dos casos, o material pode ter sido produzido com consentimento, porém, isso não significa dizer que houve autorização para sua divulgação. Mesmo nas situações em que as fotos ou vídeos – por exemplo – tenham sido enviadas pela própria vítima, isso não implica dizer que estaria “permitido” seu compartilhamento.

Especialmente nas situações envolvendo mulheres, não se vê uma punição rígida ao agressor, na medida em que há maior preocupação com as condutas que a mulher deveria ter adotado para evitar aquela situação, em vez de observar-se o comportamento daquele que divulgou o material íntimo sem autorização.

A pornografia de vingança traz inúmeras consequências às vítimas, pois quando o ato acaba em domínio público também se atinge indiretamente o grupo social e familiar.

Conforme pontua o site destinado ao Dossiê das Violências de Gênero, asconsequências não são menos graves por conta da violência se propagar em um espaço virtual. Ao contrário, muitas vezes, o alcance e a permanência que as ferramentas online permitem intensificam o trauma das agressões sofridas.”

Os impactos desse fenômeno na vida das vítimas são muitos, quais sejam: perda de emprego, distanciamento afetivo de filhos, quebra do laço social com pessoas próximas, dificuldade para se envolver em novo relacionamento, depressão e falta de confiança.

As imagens circulam, rendem comentários, exposição e permanecem no meio virtual para sempre, enquanto as vítimas têm o resto da vida para lidar com aquilo.

Em inúmeros países, os crimes virtuais têm levado algumas vítimas ao suicídio, especialmente as mais jovens, que acabam por não conseguir lidar com tanta pressão e com o medo de como os pais, os amigos e a sociedade em geral reagirão.

Algumas formas de diminuir a pornografia de vingança levam em conta a conscientização das pessoas. Há sites e campanhas em redes sociais voltadas à luta contra a pornografia não consensual, além de ONGs com o mesmo intuito.

As redes sociais e sites têm alterado suas políticas de uso, bem como facilitado a exclusão de materiais nesse sentido.

Em relação às campanhas de conscientização, destaca-se a campanha#HumanizaRedes – Pacto Nacional de Enfrentamento Às Violações de Direitos Humanos na Internet”, criada no Brasil, que consiste em uma política com o objetivo de garantir mais segurança frente as violações de direitos humanos que venham a ocorrer na internet através da possibilidade de denúncia, prevenção e segurança.

Em Curitiba/PR, foi lançada a campanha de conscientização “Mulheres Incompartilháveis”, a qual consistia no envio de fotos propositalmente borradas. Ao ampliar a imagem, via-se o seguinte dizer: “Se não é pra você, é melhor nem ver. Compartilhar fotos íntimas também é crime.”

No Brasil, anda não há lei que tipifique a pornografia de vingança em si, contudo, as questões que envolvem tal situação são analisadas com base na legislação vigente, considerando-se o direito à intimidade, vida privada e imagem.

Existem projetos de lei que visam tipificar a prática, por exemplo, incluindo-a na Lei Maria da Penha. Atualmente, no âmbito criminal, tem-se encarado a prática como injúria, difamação ou ameaça. Em casos específicos, são aplicados o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou o Marco Civil da Internet (Lei nº. 12.965/2014) e a Lei nº. 12.737/2012.

ATUALIZAÇÃO: No dia 25 de setembro de 2018, foi publicada a Lei nº. 13.718/2018 que alterou o Código Penal, para tipificar o crime de divulgação de cena de estupro. Assim, o artigo 218, C, do CP, passou a determinar que é crime oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia.

A pena prevista é de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave, podendo ser aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime for  praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.

Contato da Katrin: katrin.ab@hotmail.com

Transgênero: como alterar o nome e o sexo no registro civil?

Atualmente, o assunto “transgênero” tem feito parte de muitos diálogos entre juristas e não juristas, sendo inclusive abordado em telenovelas que passam no horário nobre da televisão brasileira. Quem assiste a novela “A Força do Querer”, transmitida pela Rede Globo, tem acompanhado o drama vivido pela personagem Ivana, que se descobriu transgênero e está dando início à transição, já que pretende ser reconhecida como Ivan.

Falar sobre esse assunto é muito importante! Por isso, o Direito Familiar não poderia ficar de fora dessa! Além do que, precisamos manter nossos leitores atualizados!

De maneira resumida e objetiva, os transgêneros são pessoas que sentem claramente que não são do gênero que fisicamente parecem ser. Antigamente, isso era tratado como um transtorno mental, de “disforia de gênero”.  Porém, em 2018, a Organização Mundial da Saúde publicou uma nova edição da Classificação Internacional de Doenças, na qual a transexualidade foi retirada da lista de transtornos mentais. Ainda assim, ela permaneceu como “incongruência de gênero”, passando a ser vista, contudo, como uma condição relativa à saúde sexual (assim como disfunção erétil ou outras condições).

A pessoa transgênero terá, por exemplo, todas as características físicas de uma mulher – seios, órgãos genitais femininos – no entanto, não se identificará com seu corpo, desejando ter um corpo mais masculino e, ser aceita socialmente. O inverso também pode acontecer, ou seja, em relação àquele que apresenta características físicas masculinas, mas se reconheceria melhor em um corpo feminino.

Frise-se que, o transtorno da identidade sexual não tem a ver com orientação sexual, ou seja, com se relacionar com homem ou mulher. É preciso separar as coisas.

O tema é bastante complexo, motivo pelo qual o objetivo do presente artigo, é, tão somente, explicar como funciona a retificação (correção) do nome e do sexo, no registro civil de pessoas transgêneros.

RETIFICAÇÃO DO NOME:

Manter o prenome(aquele que vem antes do sobrenome)constante no registro civil, para quem sofre de Disforia de gênero, fere gravemente o princípio da dignidade da pessoa. Isso porque,no meio social ela acaba sendo vista e chamada por um nome, enquanto que no seu registro constará nome que diverge de sua aparência.

Explicar no que se baseia a dignidade da pessoa é tarefa difícil, mas é certo que a felicidade é desejo de todo ser humano. Para o transexual, a felicidade está estreitamente ligada ao ajuste da sua realidade psíquica com a biológica. Negar isso seria ignorar a realidade psicológica do indivíduo e condená-lo à infelicidade dentro de um corpo que não reconhece como seu.

Por exemplo, para uma pessoa que na verdade se sente do sexo masculino, manter o nome feminino nos documentos, dificulta sua inserção social, fazendo com que possa vira passar por situações constrangedoras.

Sabe-se que, de acordo com a Lei de Registros Públicos, é permitida a alteração de nome em casos que ele acaba por expor a pessoa ao ridículo, e, portanto, a lei permite essa mutabilidade para garantir a dignidade dos cidadãos.

Vamos usar como exemplo a personagem da novela: Ivana se identifica com o gênero masculino, veste-se como tal e está inclusive fazendo tratamento hormonal a fim de adquirir características masculinas. Ora, por que não adequar seu nome à sua real identificação? Assim, Ivana passará a ser reconhecida como Ivan.

A retificação do nome no registro civil, visando adequar sua identificação à sua verdadeira identidade, influirá de forma decisiva na efetivação de sua cidadania e dignidade, evitando situações vexatórias.

RETIFICAÇÃO DO SEXO:

No que diz respeito à possibilidade de alteração do nome em registro, vimos acima que não há controvérsias e ela pode acontecer. Em relação à adequação do sexo no registro civil, porém, podemos encontrar diferentes entendimentos sobre o assunto.

Esta adequação consiste em alterar o “masculino/feminino” contido no registro de nascimento, para que fique de acordo com a nova identidade da pessoa.

No entanto, há operadores do Direito que entendem que, para corrigir o sexo da pessoa em seu assento de nascimento, é necessária a realização de cirurgia de transgenitalização.

Vamos aos posicionamentos:

Necessidade de cirurgia:

Os que seguem tal entendimento acreditam que os documentos públicos devem conter informações verdadeiras,de modo que, se o sujeito não realizou a cirurgia de mudança de sexo, o nome pode ser alterado, mas o gênero (masculino/feminino) deve permanecer o mesmo no documento, por ser o que representa a “verdade” biológica.

Assim, a alteração quanto ao sexo do indivíduo no registro só poderia acontecer quando ficar comprovado que aquele que pretende a alteração já realizou a cirurgia de redesignação de sexo (anatômico).

Ainda, para estes Operadores do Direito, a certidão de nascimento é um documento que visa atestar o nascimento de uma criança do sexo morfologicamente feminino ou masculino – ou seja, que possui os órgãos sexuais masculinos ou femininos no momento do nascimento.

Quem adota esse posicionamento também defende que manter o sexo no registro de nascimento não colocará a pessoa em situação de constrangimento, já que a maioria dos documentos de porte corriqueiro (RG, CPF, título de eleitor e carteira de motorista) não trazem informações quanto ao sexo da pessoa, bastando a alteração do prenome para que esteja em conformidade com a sua aparência.

Esse entendimento não é o da maioria e os Tribunais, grife-se, têm entendido de maneira diversa, conforme veremos abaixo.

Desnecessidade de cirurgia:

Segundo esta corrente, para que a retificação do sexo no registro civil ocorra, não é necessária a realização da cirurgia de transgenitalização.

Tal assunto inclusive foi tratado junto à 1ª Jornada de Direito da Saúde, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça, na qual foram elaborados enunciados nos quais os julgadores podem se basear, dispensando a necessidade da cirurgia.

Ainda, a Constituição Federal tem como objetivos fundamentais a extinção das desigualdades sociais e o respeito à dignidade, de modo que, pessoas transgênero encontram-se constitucionalmente protegidas e possuem direito de viver sem a influência de preconceitos.

A afirmação da identidade de gênero compreende a realização do direito à vida digna, refletindo a realidade vivenciada por cada um, sem discriminações ou direitos negados.

Para os adeptos deste posicionamento, considera-se, também, que existem transexuais que não têm interesse em adequar a sua genitália à sua identidade de gênero. Tal escolha pode advir tanto de aspectos econômicos, da própria convicção pessoal ou religiosa, dos riscos possíveis da cirurgia e até de resultados insatisfatórios.

Manter no assento/registro de nascimento o sexo da pessoa transgênero, em detrimento de sua atual realidade psicossocial e morfológica, criaria obstáculos à inserção social e impediria a prática dos atos da vida civil (qualquer ato que exija a apresentação de documentos de identificação) de maneira digna, ou seja, sem que tenha de passar por situações constrangedoras.

Podemos imaginar, por exemplo, que a pessoa que não tenha cirurgia e, por isso, tenha eventualmente negado o pedido em relação à alteração do sexo no documento, acabaria tendo que prestar certas explicações quando do preenchimento de formulários, matrículas, etc. – já que o nome não corresponderia ao sexo declarado ali. É esse tipo de situação que se quer evitar – independentemente da realização de cirurgia.

Negar a alteração, pois, seria ignorar a realidade psicológica do indivíduo e, por conseguinte, condená-lo à infelicidade dentro de um corpo que não vê como seu.

Devemos observar que o procedimento de retificação de nome e sexo deverá correr judicialmente e deverão ser apresentados laudos psiquiátricos, psicológicos, endocrinológicos, que atestem a disforia de gênero; bem como certidões emitidas por cartórios distribuidores, de antecedentes criminais e cartórios eleitorais, a fim de verificar eventuais pendências no nome da pessoa que pretende alterá-lo.

Tal cuidado serve para garantir direitos de terceiros, tendo em vista que as retificações dificultariam a localização e correta identificação da pessoa.

ATUALIZAÇÃO:

Recentemente, o STF deu seu posicionamento sobre o tema, e, pelo julgamento da ADI 4275, reconheceu aos transgêneros a possibilidade de alteração de registro civil sem mudança de sexo!

Confira a notícia com detalhes da decisão: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=371085

Ainda, a Corregedoria Nacional de Justiça publicou o Provimento 73/2018, que normatiza a alteração dos documentos dos transgêneros, permitindo que seja realizada diretamente nos cartórios. 

 

Arethusa Baroni
Flávia Kirilos Beckert Cabral
Laura Roncaglio de Carvalho
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