“Pai ou mãe é quem cria!”: entenda o que é a parentalidade socioafetiva

E, como o amor as vezes acaba, para recomeçar em outros lugares, com outras pessoas, de outras formas, surgem novas possibilidade afetivas, seja para a conjugalidade ou parentalidade que podem nascer de novas conjugalidades ou não. Mas tudo isto só é possível porque na esteira da evolução do pensamento jurídico o afeto tornou-se um valor jurídico, e na sequência ganhou o status de principio jurídico. Enfim, o amor continua provocando revoluções.”1 Rodrigo da Cunha Pereira

“Pai é quem cria” ou “Mãe é quem cria”: certamente você já ouviu alguma vez na vida tais expressões, não é mesmo?

Contemporaneamente, tem sido mais comum colocar em prática o sentido delas, juridicamente falando, já que as relações familiares baseadas no afeto estão cada vez mais presentes e que o Direito tem voltado seu olhar para isso.

A família passou por diversas transformações ao longo dos anos, adaptando-se às mudanças da sociedade e, com o reconhecimento das diversas entidades familiares pela Constituição Federal, a paternidade e a maternidade assumiram um significado muito mais profundo do que a verdade biológica. Esse significado passou a ser baseado na afetividade. Surgiu, então, o conceito de parentalidade socioafetiva (baseada em outras ligações que não a genética).

  • Mas afinal, o que é afeto?

Podemos encontrar várias definições para essa palavra: sentimento, paixão, amizade, amor, simpatia…No entanto, o afeto vai além disso, e está muito relacionado à ligação, aos laços, aos vínculos criados entre as pessoas.

Para o Direito de Família, o afeto tem que se transformar em relação. Podemos dizer, então, que “afeto” diz respeito ao sentimento de imenso carinho, cuidado e, principalmente, ao vínculo e relação que temos com alguém.

Atualmente, a palavra “afeto” tem sido utilizada com maior frequência nas discussões relacionadas ao Direito de Família. A insistência na utilização dessa palavra não é à toa, tendo em vista que as relações familiares têm sido repetidamente estruturadas com base no afeto.

Importante dizer, porém, que não se pode confundir o conceito de afetividade nos casos de paternidade ou maternidade socioafetiva com o conceito trazido pelas áreas, por exemplo, da filosofia e da psicologia.

É que, juridicamente, a afetividade será averiguada por meio da análise de condutas cotidianas. No âmbito jurídico, ela é mais do que o sentimento em si, sendo demonstrada através da prática, com estabilidade, de comportamentos caracteristicamente familiares, tais como a assistência material e a proteção do filho.

Quando falamos em filiação socioafetiva estamos tratando da relação entre pais, mães e filhos, cuja origem vem do vínculo afetivo existente entre eles, não sendo necessário que haja um vínculo genético, ou seja, para ser mãe ou pai, não é preciso ter sido aquele que gerou o filho, mas sim, aquele que exerce, de fato, a função paterna ou materna.

Assim, para o Direito, os laços de sangue não são mais, por si só, suficientes para garantir um parentesco, passando a ser admitido, portanto, que uma família seja constituída a partir do vínculo afetivo existente entre seus componentes.

No entanto, ressalte-se que o afeto só se tornará juridicamente relevante quando exteriorizado na vida social dos membros da família através da prática, por exemplo, de condutas atinentes à autoridade parental, não bastando o mero sentimento de carinho.

Para saber mais sobre autoridade parental, confira o artigo “O que é autoridade parental?” (clique aqui).

  • Parentalidade socioafetiva

Como exemplos em que se pode considerar a afetividade, podemos citar casos em que uma criança foi registrada somente com o nome da mãe, pois não havia certeza quanto ao genitor e nem sobre o seu paradeiro.

No entanto, esta mãe acabou se casando e seu parceiro passou a assumir espontaneamente as responsabilidades em relação à criança, criando-a como se fosse seu filho, assumindo o papel de figura paterna. Nesse caso, a filiação está estritamente baseada na relação de afeto, nos laços que foram criados entre a criança e aquele “pai de criação”.

Do mesmo modo, pode acontecer com uma criança que tem o nome do pai biológico registrado, com quem nunca teve contato e não criou laços de afeto, mas foi criado pelo homem com quem sua mãe se relacionou depois do seu nascimento e convive até hoje, tendo ele como referência paterna.

Neste caso, poderá ser admitido que este “pai de criação” seja registrado efetivamente como pai também, ou seja, poderá haver no registro de nascimento o nome dos dois pais.

Lembramos que estes exemplos também podem ser aplicados em relação às mulheres, que podem ser mães socioafetivas (ou seja, “mães de criação”) e, ainda, podem ir além da relação homem e mulher, estendendo-se inclusive às relações homoafetivas (“Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo” – clique aqui).

É muito importante observar que a filiação socioafetiva produz efeitos jurídicos, e isto significa que, a partir do momento em que se estabelece esta relação afetiva e um pai e/ou uma mãe registra um filho socioafetivo como se fosse seu filho legítimo, todos os efeitos decorrentes da filiação serão aplicados (ex.: o filho socioafetivo passa a ser herdeiro assim como os filhos biológicos, sem qualquer distinção, bem como passa a ter direito a receber alimentos e eventuais benefícios previdenciários.)

De maneira resumida, pode-se dizer que a filiação socioafetiva deverá ser baseada em uma relação de afeto, em que há convivência e tratamento recíproco durante um razoável período de tempo, concretizando a ligação entre a figura paterna/materna e o filho. É uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação diante de terceiros como se filho fosse.

Portanto, é muito importante que as relações afetivas sejam valorizadas, entendidas e respeitadas, para que não se corra o risco de a filiação socioafetiva tornar-se banalizada visando apenas benefícios patrimoniais.

Vale dizer que, o fato de ser valorizada a afetividade não faz com que aquele genitor que não consegue, por questões de personalidade, por exemplo, demonstrar o afeto (carinho) esperado, deixe de ser considerado pai ou mão, desde que ele efetivamente exerça a função paterna ou materna.

Conclui-se, portanto, que, em um momento anterior, somente eram considerados os laços biológicos para a constituição da família, porém, com a evolução da sociedade, o Direito precisou estar atento às transformações, passando a considerar também o modelo familiar constituído com base na afetividade.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho


1 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A família de Nazaré e a parentalidade socioafetiva. Disponível em:<http://www.ibdfam.org.br/artigos/1087/A+fam%C3%ADlia+de+Nazar%C3%A9+e+a+parentalidade+socioafetiva>

Registrei uma criança que não é meu filho biológico: o que fazer?

Qual seria a solução para as situações em que uma pessoa registra um filho em seu nome e, posteriormente, vem a descobrir que não há ligação genética/ biológica?

Um dos caminhos seria pedir judicialmente a desconstituição da paternidade, porém, esses casos tendem a ser complexos e não são fáceis de se resolver, até por conta do interesse da criança ou adolescente e da paternidade socioafetiva que pode ter se estabelecido. Por isso, resolvemos escrever o presente artigo sobre o tema!

A família é considerada pela Constituição Federal como a base da sociedade, e por esse motivo, tem especial proteção do Estado.

Para tentar dar estabilidade às famílias, a lei criou um sistema de reconhecimento dos filhos por meio da presunção. Mas o que isso quer dizer?

Significa que, de acordo com a lei, quando um homem e uma mulher são casados, supõe-se que o marido é sempre o pai da criança gerada durante o casamento, ou seja, “independentemente da verdade biológica, a lei presume que a maternidade é sempre certa, e o marido da mãe é o pai de seus filhos”1.

Nesse caso, para registrar o filho, o pai não precisa necessariamente estar presente, basta que a mãe apresente a certidão de casamento (comprovando que o filho nasceu durante o matrimônio), e será colocado o nome do marido como pai da criança. Essa é uma das situações nas quais pode acontecer o “equívoco” no registro.

Quando as pessoas não são casadas, essa presunção obviamente não existe (mesmo nos casos de união estável) e a presença no Cartório daquele que diz ser o pai é obrigatória, já que o registro, nesses casos, deve ser voluntário, livre e espontâneo, não sendo necessária a comprovação de qualquer vínculo biológico.

Não são raros os casos em que as crianças são registradas durante o casamento pelo então presumido pai e, posteriormente descobre-se que não é o pai biológico (vários podem ser os motivos, ex.: casos extraconjugais). Ou, pode acontecer de o suposto pai, mesmo que não seja casado com a mãe da criança, registrar o filho em seu nome, porque mantinha um relacionamento com a genitora e acreditava ser o pai biológico, vindo a saber, mais tarde, que não o é.

Para resolver esses casos existem duas medidas judiciais cabíveis: a ação negatória de paternidade e a de anulação de registro civil, ambas visando a desconstituição da paternidade.

a) Quem pode propor as ações de desconstituição de paternidade?

A negatória de paternidade deverá ser proposta por aquele que registrou o filho durante o período do casamento – pelo então “marido”. Já o pedido de anulação do registro civil, em tese, deverá ser feito por aquele que registrou o filho por livre e espontânea vontade, sem que a lei presumisse que ele é o pai.

Quando se tratar do então “marido” propondo a ação para desconstituir a paternidade, ele deverá alegar que tem dúvidas se de fato é o pai biológico do filho que foi registrado com seu nome e solicitar a realização de exame de DNA.

Comprovado por exame de DNA que o então “marido” não é realmente o pai, o seu nome poderá – se excluída a possibilidade de filiação socioafetiva, ser retirado da certidão de nascimento.

Para saber mais sobre filiação socioafetiva, confira o artigo “’Pai ou mãe é quem cria’: entenda como o Direito entende isso” (clique aqui).

Entretanto, o mesmo não acontece quando aquele que registrou a criança não era casado com a mãe e simplesmente o fez de livre e espontânea vontade. Para retirar seu nome da certidão de nascimento e desconstituir esta paternidade, este pai precisará comprovar que foi induzido a erro, ou que houve um vício de consentimento, além de comprovar a ausência de vínculo biológico por meio do exame de DNA.

Isso significa que ele precisará demonstrar, de forma convincente, que realmente acreditava ser o pai biológico da criança quando a registrou, mas que foi enganado sobre os fatos.

Por erro ou vício de consentimento, deve-se compreender a falsa percepção da realidade, situação em que a vontade declarada, embasada num conhecimento errado da realidade, não seria assim expressada se aquele que registrou a criança tivesse o total conhecimento da realidade.

Importante esclarecer, ainda, que o exame de DNA negativo, por si só, não serve para retirar a paternidade. Isso porque, o ato de comparecer ao cartório e registrar uma criança é irrevogável, não sendo admitido o simples arrependimento, o que poderia gerar um tumulto nos cartórios de registros, com milhares de registros sendo feitos e refeitos a todo instante.

O registro de um filho é algo muito sério e produz muitos efeitos no mundo jurídico, não sendo aceitável, portanto, a abordagem deste assunto de maneira simplória, banal.

Cabe ressaltar, também, que a negatória (para desconstituir) de paternidade é uma ação personalíssima, ou seja, somente o pai presumido poderá contestar a paternidade.

No entanto, caso este “pai” que pretende desconstituir o registro venha a falecer no decorrer da demanda, ou se torne incapacitado, seus herdeiros poderão dar seguimento ao feito, ou eventual curador, para os casos de incapacidades.

Quanto ao pedido de anulação do registro de nascimento, há entendimento no sentido de que outros interessados podem questionar a paternidade, inclusive terceiros (por exemplo: o pai biológico que pretende reconhecer o filho que já foi registrado por outro; os herdeiros do pai registral; etc).

b) Contra quem se propõe a ação para desconstituir a paternidade?

A ação é proposta contra o filho, em regra. Em sendo falecido o filho, seus herdeiros serão chamados ao processo e, não havendo herdeiros, poderão ser chamados outros eventuais interessados.

Casos que envolvem discussões sobre filiação são muitos comuns e, atualmente, novas discussões têm surgido sobre o tema. A intenção do presente artigo é apenas esclarecer quais meios estão disponíveis no mundo jurídico para desconstituir uma paternidade atribuída de maneira equivocada.

Certo é que, cada caso deve ser analisado levando-se em conta suas particularidades e nem sempre a ausência de ligação biológica será suficiente para se desfazer o vínculo de paternidade.

Arethusa Baroni

Flávia Kirilos Beckert Cabral

Laura Roncaglio de Carvalho


1 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: RT, 2006.

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